“Estamos juntos, estamos fortes!” Assim foi acordando a primeira assembleia popular dos bairros da Vida Justa este domingo de manhã, no Centro Cultural de Carnide. As palavras foram-se repetindo durante a manhã de domingo, enquanto vários oradores foram falando dos diferentes problemas das comunidades dos bairros.
Com uma assembleia composta de ativistas e moradores, a assembleia começou com intervenções sobre os temas propostos para discussão, sobre os quais a Vida Justa trabalha. Imigração, violência policial e habitação, foram a exposição do problema sobre os quais a assembleia se debruça durante o dia.
Sobre a imigração, Priscila Valadão lembrou que Portugal já foi alvo de várias vagas de imigração. Mais recentemente com imigrantes dos países das ex-colónias, depois do leste europeu, do Brasil e agora do sudeste asiático, mas salientou que a imigração “não tem de ser vista como um problema”. Sobre os recentes ataques à manifestação de interesse, Priscilla afirmou a posição da Vida Justa. “Não existem pessoas ilegais, o discurso de ódio é que é ilegal!”
Violência policial
Milhares desfilaram na Avenida para exigir justiça para Odair Moniz
Kromo di Ghetto, rapper do alto da Cova da Moura, falou sobre a sua experiência com a violência policial, sobretudo a partir do episódio na esquadra em 2014, onde juntamente com Flávio Almada, foram “tratados como criminosos”. “Nesse dia fomos vítimas de um sistema de violência indescritível sobre os corpos negros”, explicou. Entre outras experiências, concluiu que há um problema muito grave com os agentes que policiam as comunidades: “o simples facto de poder ou não haver capacidade de diálogo” mas defende que “não é através da repressão que as coisas se vão resolver”. Em reflexão sobre o assassinato de Odair Moniz às mãos de um agente da Polícia de Segurança Pública, a assembleia fez um minuto de silêncio.
A habitação “é um dos primeiros direitos que não nos é assegurado e perpetua a insegurança”, afirmou Beatriz Lopes. A ativista defendeu que a falta de habitação é também um fator de criminalização da pobreza, seja na perseguição de pessoas sem abrigo, seja na perseguição de bairros auto-construídos e ocupações. “Se a gente não tem casa, não temos onde comer, onde dormir, onde viver, onde estar com os nossos filhos...” dizia Beatriz quando foi interrompida por uma pessoa na audiência. “Os nossos filhos querem um teto, querem legalização, há pessoas a serem expulsas dos bairros, isso é desumano, Onde está o presidente da Câmara de Sintra?” A interrogação foi pontuada pelos aplausos da assembleia, a que se seguiu outra intervenção do público. Desta vez, uma outra pessoa, despejada do Bairro Padre Cruz, onde acontece a assembleia. “Tivemos 25 polícias na minha casa para me despejar, já não dá!”, exclamou. Beatriz, ouvindo atentamente os testemunhos de pessoas afetadas em primeira mão pela crise de habitação, voltou a atestar a importância da Assembleia dos Bairros, para discutir os problemas que afetam várias comunidades ao mesmo tempo. “Sozinhas não nos querem ouvir”, concluiu.

Mas esses são só alguns dos temas abordados. Depois das intervenções, os participantes são separados por grupos e começam a discussão. Numa sala fala-se dos problemas da habitação pública no Bairro Padre Cruz, onde chove dentro das casas, ou alguém conta a história sobre a destruição da sua casa auto-construída. Um pouco ao lado, fala-se dos problemas dos serviços públicos e das insuficiências das infraestruturas na periferia de Lisboa. Um outro grupo fala precisamente dos transportes públicos no Cacém e de como os atrasos prejudicam quem precisa de ir para o trabalho cedo de manhã. No auditório, três grupos abordam temas diferentes. No palco partilha-se a experiência das associações de jovens no bairro, e de como as autarquias têm dificultado o seu trabalho, enquanto no cimo da plateia alguém explica como a polícia chama estudantes das escolas básicas à esquadra sem sequer notificar os pais, ou revista qualquer pessoa à entrada do bairro. Cá em baixo, junto à entrada, fala-se da diferença entre o que está na lei da imigração e o que acontece na prática para obtenção da nacionalidade portuguesa.
“Vidas injustas das pessoas nos bairros”
Pela hora do almoço, já quase 200 pessoas se juntaram à assembleia. “É um trabalho que tem mais de um ano, de diálogo entre as várias lutas de cada bairro”, explica Beatriz Lopes, a mesma que falava sobre habitação no início da assembleia. “Para aprenderem uns com os outros sobre aquilo que se tem feito, porque há bairros que têm muita dificuldade em se mobilizar, e outros que se mobilizam mais facilmente”.
Por isso, a assembleia de bairro juntou as experiências de diferentes moradores para partilharem a luta política e traçarem um caminho em frente, para as pessoas “sentirem que têm instrumentos para fazer a sua luta e um movimento a apoiá-las”. Nisso, os grupos de trabalho interligam-se porque “por exemplo, sempre que falamos de habitação, surgem as outras temáticas na conversa”. Sejam os salários, a criminalização de quem arranja casa ou a perseguição policial. “Todos os grupos de trabalho trabalham um sistema que é a repressão das pessoas nos bairros, e a vida injusta das pessoas nos bairros”, diz.

O espaço de debate “é em si uma interligação”, e a experiência não é só um espaço de partilha, “porque muitas destas pessoas já estão fartas de ser ouvidas, mas depois não há nenhum trabalho consequente desse processo”. Por isso, Beatriz espera que no final do dia se tenha um plano de ação bem composto, “conversar a gente já vem conversando, agora queremos é resolver isto e que isso tenha uma materialização”.
“Às vezes há dificuldade de manter as pessoas, isso é que é mais difícil”, explica a organizadora do movimento. “Há a dificuldade de perceberem e se inteirarem que é uma luta longa, e que há vários processos em que elas têm de comparecer”. Mas essa “perda de esperança” pode, segundo Beatriz, ser ultrapassado com o trabalho que a Vida Justa tem estado a fazer. “Queremos sempre tirar de qualquer espaço de fala uma ação para que as pessoas não sintam que foi em vão, para que as pessoas continuem a aparecer”.
Grande Marcha dos Bairros em março e abril
O movimento Vida Justa anunciou entretanto que vai realizar em março e até meados de abril, aos fins de semana, uma “Grande Marcha dos Bairros pela Vida Justa” que se traduzirá em “ações de mobilização e força”.
Para além disso, organizar-se-á um torneio de futebol para unir os jovens dos bairros e acabar com desavenças que não lhes permitem ver quem são os seus verdadeiros inimigos”. Na calha estão ainda, um “jornal dos bairros e uma rádio ‘online’ para divulgar o que se passa” nas comunidades “e a vontade de quem lá vive”.
Já os rappers dos diversos bairros envolvidos comprometem-se a juntar vozes e criar em conjunto a “mixtape Vida Justa”.