Não é só a Rússia que está na mira do “Estado Islâmico” do Khorassan

28 de março 2024 - 10:20

As especialistas Sara Harmouch e Amira Jadoon explicam o que é esta organização que reivindicou o atentado de 22 de março em Moscovo, qual a sua agenda política e os objetivos por detrás da ação.

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Escombros do ataque no Crocus City em Moscovo. Foto do Oblast de Moscovo/Wikimedia Commons.
Escombros do ataque no Crocus City em Moscovo. Foto do Oblast de Moscovo/Wikimedia Commons.

Em 22 de março de 2024, a Rússia sofreu o pior ataque terrorista no seu território desde há uma geração. Pelo menos 137 pessoas foram mortas por terroristas num concerto nos arredores de Moscovo. O grupo Estado Islâmico no Khorassan (EIK) reivindicou a autoria do atentado. E, embora as autoridades russas tenham manifestado dúvidas sobre a veracidade desta reivindicação, a fim de atribuir a responsabilidade do ataque à Ucrânia, funcionários americanos disseram à Associated Press que acreditam que o EIK, que pode ser descrito como o ramo local do Daech no Sul e na Ásia Central, esteve de facto por detrás do ataque.

As investigadoras Amira Jadoon, da Universidade de Clemson, e Sara Harmouch, da Universidade Americana – duas especialistas que seguem de perto as atividades do EIK - explicam ao The Conversation o que o ataque de Moscovo nos diz sobre os pontos fortes e a agenda da organização.


O que é o EIK?

O EIK opera principalmente na zona do Afeganistão-Paquistão, mas está presente em todo o "Khorassan" histórico – uma região que se estende por partes do Afeganistão e do Paquistão, bem como pelo Irão e outros países da Ásia Central.

Criado em 2015, o EIK tem como objetivo estabelecer um "califado" – um sistema de governação sujeito à mais estrita aplicação da lei da Sharia e colocado sob a autoridade de líderes religiosos – nesta região que abrange a Ásia Central e do Sul.

O EIK partilha a ideologia da sua organização-mãe, o grupo “Estado Islâmico”, que promove uma interpretação extremista do Islão e considera como alvos legítimos os governos laicos, assim como as populações civis não muçulmanas e os grupos e indivíduos muçulmanos que não partilham a sua visão do Islão.

O grupo é conhecido pela sua extrema brutalidade e por atacar frequentemente instituições governamentais e civis, incluindo mesquitas, estabelecimentos de ensino e espaços públicos.

Após a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão em 2021, os principais objetivos do EIK têm sido desafiar a legitimidade dos Talibãs atualmente no poder neste país devastado pela guerra, afirmar-se como o líder legítimo da comunidade muçulmana na sua área e aparecer como o principal adversário regional dos regimes existentes.

Além disso, a transição dos Talibãs de um grupo insurrecional para uma entidade governamental deixou muitas fações militantes afegãs sem uma força unificadora – uma lacuna que o EIK procura preencher.

Porque é que a Rússia foi visada pelo EIK?

O EIK há muito que apresenta a Rússia como um dos seus principais adversários. Utiliza amplamente a retórica anti-russa na sua propaganda e já atacou interesses russos no Afeganistão, incluindo um ataque suicida à embaixada russa em Cabul, em 2022, que matou dois funcionários da embaixada russa e quatro transeuntes afegãos.

O Estado Islâmico, no seu sentido mais lato, também tem como alvo a Rússia, por uma série de razões. Estas incluem queixas de longa data sobre as anteriores intervenções violentas de Moscovo em regiões de maioria muçulmana, como o Afeganistão e a Chechénia. Além disso, as alianças de Moscovo com regimes que se opõem ao grupo do Estado Islâmico, nomeadamente a Síria e o Irão, fizeram da Rússia um adversário maior aos olhos da organização terrorista e dos seus filiados. Em particular, a Rússia tem sido um aliado chave do Presidente sírio Bashar Al-Assad desde o início da guerra civil síria em 2011, fornecendo-lhe apoio militar para lhe permitir lutar contra vários grupos que procuram derrubá-lo, incluindo o Estado Islâmico. Esta oposição direta ao grupo terrorista e às suas ambições de califado fez da Rússia um alvo privilegiado para o EI em geral e para o EIK em particular.

A cooperação da Rússia com os talibãs – o principal inimigo do EIK no Afeganistão - acrescenta uma camada de animosidade suplementar. O grupo Estado Islâmico considera inimigos do Islão os países e grupos que se opõem à sua ideologia ou aos seus objetivos militares, incluindo os que procuram estabelecer relações com os talibãs.

Ao atacar alvos russos, o EIK procura, em parte, dissuadir a Rússia de se envolver mais no Médio Oriente. Mas estes ataques também dão grande publicidade à sua causa e têm como objetivo inspirar os seus seguidores em todo o mundo. Desta forma, para a "marca" Estado Islâmico, o atentado de Moscovo representa simultaneamente uma vingança contra a Rússia e uma operação de comunicação de dimensão global. Esta abordagem pode revelar-se muito lucrativa, nomeadamente para a sua filial da Ásia Central e do Sul, na medida em que lhe pode trazer novos recrutas, novos financiamentos e um aumento da sua influência na nebulosa jihadista.

O que é que este ataque nos diz sobre as capacidades e a estratégia do EIK?

O simples facto de o EIK estar associado à carnificina de Moscovo – quer o seu envolvimento tenha sido direto ou indireto – reforça a reputação do grupo. Este episódio testemunha a sua crescente influência e a sua determinação em fazer sentir a sua presença na cena mundial.

De facto, cometer um ataque de grande visibilidade numa grande cidade, a milhares de quilómetros da sua base afegã, mostra que o EIK é capaz de alargar o seu alcance operacional – quer diretamente, quer através da colaboração com fações terroristas que partilham as mesmas ideias.

A escala e a sofisticação do ataque demonstram capacidades avançadas de planeamento, coordenação e execução, e reafirmam inequivocamente a determinação do EIK em tornar-se cada vez mais ativo a nível internacional.

Tal como o ataque do EIK no Irão em janeiro de 2024, que matou mais de 100 pessoas, o último massacre sublinha o lugar do EIK na agenda jihadista global promovida pelo grupo Estado Islâmico e contribui para alargar a atração da sua ideologia e da sua campanha de recrutamento através de uma maior atenção dos meios de comunicação social internacionais. Isto permite-lhe continuar a ser um ator político importante aos olhos dos seus simpatizantes no Sul e na Ásia Central, e para além dela. Mas também permite desviar a atenção dos seus reveses locais. Tal como a sua organização-mãe, o grupo do Estado Islâmico, o EIK tem sofrido derrotas militares, perda de território e de dirigentes e uma diminuição de recursos nos últimos anos.

O alegado papel desempenhado pelo EIK no atentado de Moscovo recorda, portanto, aos observadores, a ameaça que a organização continua a representar.

Ao atacar uma grande potência como a Rússia, o EIK tem como objetivo enviar uma mensagem de intimidação a todos os Estados envolvidos nas operações contra o grupo Estado Islâmico e minar o sentimento de segurança dos seus cidadãos. Para além disso, a sua estratégia faz parte de um processo de "internacionalização" que tem vindo a prosseguir com renovado vigor desde 2021, visando países presentes no Afeganistão, incluindo o Paquistão, a Índia, o Usbequistão, o Tajiquistão, a China e a Rússia, marcando uma expansão deliberada do seu foco operacional para além das fronteiras locais.

O atentado de Moscovo, que vem na sequência do atentado de janeiro no Irão, sugere que o EIK está a intensificar os seus esforços para exportar a sua luta ideológica diretamente para os territórios de nações soberanas. Trata-se de uma estratégia cuidadosamente calculada, suscetível de aterrorizar muitas capitais, como o demonstraram já as primeiras reações internacionais à carnificina no Crocus City.


Sara Harmouch é doutoranda na School of Public Affairs da American University.

Amira Jadoon é professora de Ciência Política na Universidade de Clemson.

Texto publicado originalmente no The Conversation. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.