Tendo findado recentemente o prazo de consulta em relação à classificação, a pedido dos proprietários da Herdade da Comenda, do espaço contíguo onde se encontra o Parque de Merendas enquanto sítio de intervenção arqueológica, urge fazer o ponto de situação e lançar o alerta para o que está em jogo. [Ler aqui o contributo entregue por um grupo de cidadãos, incluindo o autor deste artigo]
Existem, de facto, no local, vestígios arqueológicos revelados por achados e sondagens de há décadas. É por isso legítimo e até desejável que esse património arqueológico deva ser objecto de classificação, investigação e salvaguarda.
Porém, a entidade promotora da classificação arqueológica do local, a empresa Seven Properties, da família Mirpuri, é a mesma que mandou construir um muro de cimento com barras de ferro sobre parte do mesmo património arqueológico que agora alega pretender proteger. Acresce que a visita técnica conducente à sua classificação não cumpriu os preceitos legais e foi conduzida por Luiza Mirpuri, em nome dos interessados, que são a mesma entidade que foi derrotada recentemente em tribunal por um movimento cívico por ter colocado uma vedação de ferro em torno do aludido Parque. O seu propósito era excluir a população de Setúbal, que o frequentava regularmente há mais de 70 anos, do seu usufruto. A vedação foi recentemente removida na sequência dessa mesma derrota.
Neste contexto, fica claro que as preocupações arqueológicas da família Mirpuri são falsas e constituem mais um estratagema ao serviço da sua intenção antiga de se apropriarem de uma parcela pública de território de grande valor natural e paisagístico, de tradicional frequência e usufruto pelas populações, que confina com a sua propriedade e que alegam ser também sua, apesar de os anteriores proprietários terem reconhecido, por escrito, que pertencia ao domínio público marítimo e de a legislação aplicável em vigor também corroborar, de maneira simples e evidente, este facto.

A questão da propriedade da parcela referente ao Parque de Merendas encontra-se suscitada em tribunal pelo mesmo movimento e acarretou um averbamento nesse sentido em sede de registo predial e será objecto de uma audiência preliminar em tribunal em Outubro deste ano corrente. Ademais, o próprio PDM de Setúbal atribui a esse espaço o uso exclusivo para Parque de Merendas. A própria Capitania do Porto de Setúbal já reconheceu, também por escrito, que o aludido Parque se encontra em domínio público marítimo. Os motivos pelos quais a Capitania não actuou imediatamente contra a construção ilegal de muros e vedações em pleno domínio público marítimo, providenciando a sua imediata demolição, ainda não são publicamente conhecidos e urge apurar o que está por trás dessa inacção.
Alega, falsamente, a família Mirpuri, que o Parque não está cuidado, que acumula lixo e que representa risco de incêndio. Com que intenções? É do conhecimento da população de Setúbal que existem estudos antigos para o desenvolvimento de projectos imobiliários numa parcela de terreno da Herdade a montante do Parque de Merendas. Será que o seu uso público é visto pelos Mirpuri, numa perspectiva classista, como obstáculo para conseguir desenvolver um futuro projecto imobiliário que possa alcançar a almejada classificação de PIN (Projecto de Interesse Nacional), aprovada discretamente nalgum Conselho de Ministros futuro, fazendo, desse modo, tábua rasa da salvaguarda de todo aquele precioso património ambiental, por enquanto devidamente classificado e protegido?
Será que é esse o motivo para acabar com o Parque das Merendas e a sua frequência pela população e eventualmente substituí-lo por um “centro de interpretação arqueológica”, novamente vedado, de acesso assim condicionado e monetizável pela Seven Properties e factor de “valorização” da sua Herdade?
As próprias obras no palacete da Herdade, património cultural municipal classificado, foram objecto de três embargos devido à violação grosseira dos mais elementares princípios e regras de restauro e salvaguarda da identidade original desse mesmo monumento, o que também diz muito das verdadeiras preocupações patrimoniais e culturais dos Mirpuri.
Na verdade, não existe nenhum motivo científico ou risco patrimonial, identificados no âmbito do processo de classificação arqueológica, que possam fundamentar ou legitimar qualquer condicionamento do normal usufruto público do espaço onde se encontra o Parque das Merendas como vem sendo feito há décadas. O uso do Parque e a classificação arqueológica da parcela adequada não são, de todo, incompatíveis, ao contrário do que os Mirpuri insidiosamente pretendem.
Por todos estes motivos, torna-se urgente alertar a opinião pública de Setúbal e do próprio país para mais esta descarada, amoral e ilegítima tentativa de apropriação de património público a favor dos mais obscuros interesses privados e em prejuízo do bem comum das populações.
João Nuno Cruz é residente em Setúbal e aderente do Bloco de Esquerda