Faixa de Gaza

Dois anos de barbárie

07 de outubro 2025 - 15:13

Passaram dois anos desde que o governo de Benjamin Netanyahu lançou a sua campanha genocida em Gaza. Os dados oficiais indicam cerca de 67 mil mortes, mas este número pode estar subestimado, segundo os especialistas.

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Queralt Castillo Cerezuela e Pablo Elorduy

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População de Gaza a ser deslocada. Foto El Salto.
População de Gaza a ser deslocada. Foto El Salto.

De acordo com os últimos dados do Ministério da Saúde de Gaza, mais de 67.000 pessoas, incluindo 20.000 crianças, foram mortas pelo exército sionista desde 7 de Outubro de 2023. No entanto, acredita-se que o número seja muito superior; alguns falam em cerca de 600.000 mortos. A UNICEF estima o número de feridos em 411.000 e, de acordo com os seus dados, apenas 14 hospitais permanecem parcialmente operacionais, dos 36 que havia no enclave. “Mais de 708 mil crianças foram privadas de educação. No final de Agosto deste ano, a fome foi confirmada na Cidade de Gaza, com um aumento de 500% de casos de subnutrição infantil aguda entre Fevereiro e Julho, e pelo menos 147 crianças já morreram de subnutrição", refere o seu último relatório.

78% dos edifícios estão danificados ou destruídos. A maioria vive em campos de refugiados.

Há poucos dias, a revista científica The Lancet previa que o número de 67.000 mortes é uma subestimação; e que o número de pessoas mortas pelo exército israelita pode ser até 70% superior, o que significaria que Israel eliminou 10% da população do território. A italiana Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinianos Ocupados, sugeriu ainda que o número real de mortos pode ser dez vezes superior ao número oficial.

Após dois anos de genocídio, uma fome declarada e um mandado de detenção internacional emitido pelo Tribunal Penal Internacional (que marcou um ponto de viragem, mas que teve pouca utilidade) contra o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, a população de Gaza enfrenta agora um período crítico, uma vez que um possível acordo de paz entre o Hamas e Israel, mediado pelos Estados Unidos, Qatar, Egito e Turquia, está a ser negociado no Egito.

O exército israelita visa atualmente a Cidade de Gaza, a cidade mais populosa do enclave, situada a norte. Desde há alguns dias, no dia 1 de outubro, e após vários avisos e ameaças de evacuação obrigatória, o governo de Netanyahu considera aqueles que decidem permanecer como “terroristas ou cúmplices de terroristas”.

A resposta às ações do Hamas de 7 de outubro de 2023, que ceifaram a vida a 1.200 pessoas, incluindo 750 civis, e culminaram na detenção de cerca de 250, das quais 48 permanecem em cativeiro (metade delas foram mortas), foi um genocídio televisionado em tempo real. Nestes dois anos de massacres, o exército israelita arrasou tudo: vidas humanas, colheitas e infraestruturas. Com o que não acabou foi com o Hamas. Nem com a dignidade de um povo que se recusa a desaparecer sob os escombros. A população, no entanto, está a suster o último suspiro sob as bombas e perante um acordo de paz que está a ser negociado a contra-relógio no Egito. Um acordo com detalhes ainda por determinar e com um beneficiário claro: Israel.

Para além das mortes transmitidas em direto de civis em Gaza, ocorreram nestes dois anos uma série de acontecimentos que marcaram pontos de viragem: relatórios devastadores de organizações internacionais, tentativas de negociação, bloqueios de abastecimento, fome e tentativas de grupos ativistas para romper o cerco. Agora, com um plano de paz na ordem do dia, o genocídio parece estar a entrar numa nova fase.

O que vem a seguir?

O futuro de Gaza e do seu povo é incerto. No momento em que este texto foi escrito, o Hamas e Israel estavam a negociar, através do Qatar, do Egito e da Turquia, o plano de Trump para um alegado acordo de paz. Apesar disso, o exército israelita continuou a bombardear o enclave.

De acordo com as últimas informações, o Hamas prometeu entregar os prisioneiros israelitas que permanecem sob a sua custódia, extraditar os corpos dos reféns mortos e entregar o poder a um organismo independente de tecnocratas palestinianos. Se este último ponto for cumprido, o Hamas seria afastado do poder após quase 20 anos a governar o enclave. Segundo o plano de Trump, Israel não poderá anexar Gaza nem ocupar o território; e a população de Gaza poderá permanecer. A criação de uma Autoridade Internacional de Transição para Gaza (AITG), chefiada pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, também está a ser ponderada.

Rosa Meneses, vice-diretora do Centro de Estudos Árabes Contemporâneos (CEARC), explica ao El Salto que o plano gera incerteza e esperança em igual medida. “Não é o melhor acordo, mas temos esperança de que o massacre do povo palestiniano acabe, que o genocídio acabe.” Para a especialista, as negociações têm pontas soltas que não foram resolvidas. “Se conseguirmos estabilizar esta primeira fase, o que se segue será muito complexo, porque o Hamas só aceitou alguns pontos, e não sabemos até que ponto estas negociações irão. Também não sabemos até que ponto a retirada militar de Israel será implementada, se será parcial ou não, ou como se desenvolverá o desarmamento do Hamas ou como será estruturado. Não será fácil. Por outro lado, temos a componente Trump, que é muito imprevisível e volátil. Temos agora expetativas muito elevadas, mas também um elevado nível de dúvida e incerteza.”

A jornalista e especialista em Médio Oriente sublinha ainda a falta de consulta ao povo palestiniano sobre o seu futuro, o que poderá gerar problemas nos próximos anos. Salienta que “um plano de paz que não contemple a autodeterminação do povo palestiniano, a justiça ou o reconhecimento do seu direito a existir como povo, como sociedade, como nação ou como Estado terá os dias contados. Não será um plano realista.”

Por seu lado, Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana, celebrou o possível acordo de paz e “acolheu com agrado as declarações positivas do Hamas, uma vez que indicam a vontade de libertar todos os reféns e de adotar uma abordagem construtiva durante esta fase crítica, que exige que todos exerçam o mais alto nível de responsabilidade nacional”. Os líderes europeus também congratulam-se com este possível acordo entre as partes envolvidas.

Onde está o Hamas?

Outra questão central nos últimos dois anos é onde está o Hamas. A resposta é simples: o grupo está a negociar o acordo de paz proposto por Trump; e está longe de ser aniquilado como os israelitas prometeram nos últimos dois anos.

Embora alguns dos principais dirigentes da organização tenham sido mortos, o fim do grupo está longe de acontecer. No seu discurso de sexta-feira, transmitido na sua rede social Truth Social, Trump afirmou que mais de 25 mil soldados do Hamas foram “abatidos”. “A maioria dos restantes está cercada e militarmente encurralada, simplesmente à espera que eu dê a ordem de 'vamos', para que as suas vidas sejam rapidamente extintas. Quanto aos outros, sabemos onde e quem são, e serão rastreados e mortos”, disse o presidente dos EUA.

Ainda não há números oficiais, mas sabe-se, graças aos serviços de informações estadunidenses, que as perdas sofridas pelo grupo nos últimos dois anos foram compensadas com novos recrutas. Uma informação publicada pela Reuters no início de 2024 forneceu os números com que a CIA estava a trabalhar: em três meses de genocídio, o Hamas recrutou entre 10.000 e 15.000 combatentes (o mesmo número que tinha perdido até então).

Jornalistas e pessoal de saúde assassinados

Este é um “conflito” de imagens e dados; e quanto a estes últimos, é necessário realçar que este é o episódio bélico com o maior número de jornalistas assassinados desde a Segunda Guerra Mundial; pelo menos 252 profissionais foram mortos às mãos do exército sionista; muitos deles em ataques generalizados; outros, em ataques direcionados em que eram alvos explícitos. De todas estas mortes, o assassinato de toda a equipa da Al Jazeera na Cidade de Gaza destaca-se pela magnitude da sua brutalidade. Anas al-Sharif e Mohammed Qreiqeh, os operadores de câmara Ibrahim Zaher e Moamen Aliwa, e o seu assistente Mohammed Noufal morreram num ataque coordenado pelos israelitas. Esta ação deliberada contra a imprensa de Gaza marcou um antes e um depois na profissão, e centenas de jornalistas e comunicadores de todo o mundo, bem como dos meios de comunicação social nacionais e internacionais, manifestaram o seu repúdio pelo ataque.

Outro sector visado por Israel nesta campanha genocida foi e continua a ser o sector da saúde. Desde 7 de outubro de 2023 que hospitais e clínicas foram declarados alvos de ataque por parte das Forças Armadas israelitas. Tal como o sector dos media, este “conflito” resultou no maior número de mortes entre os profissionais de saúde desde a Segunda Guerra Mundial; cerca de 1.722 foram mortos, de acordo com o Gabinete do Primeiro-Ministro do Centro de Comunicação do Governo Palestiniano.

Há poucas horas, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) noticiou a morte do seu décimo quinto funcionário em Gaza, Abed El Hameed Qaradaya, que sucumbiu aos ferimentos causados por estilhaços após um ataque do exército israelita na quinta-feira, 2 de outubro. Segundo a organização, outro funcionário da MSF, Omar Hayek, também morreu no mesmo ataque. Todos os funcionários foram identificados como trabalhadores humanitários. “Este é o terceiro funcionário da MSF a ser morto em menos de 20 dias”, informam os MSF.

Destacam episódios como o bombardeamento de 13 de abril ao Hospital Al Ahli, um dos mais importantes do enclave, e o ataque três dias depois ao hospital de campanha em al-Muwasi, perto da cidade de Khan Younis, no sul. Mas se há um ataque relevante pela sua brutalidade é o assassinato, em meados de Março deste ano, de quinze paramédicos palestinianos do Crescente Vermelho. Apesar de claramente identificados, foram mortos pelo exército israelita e enterrados numa vala comum. Poucos dias mais tarde, investigações revelaram que podiam ter sido executados um a um por soldados israelitas. As autópsias nos corpos revelam que os paramédicos morreram devido a ferimentos de bala na cabeça e no tronco e por ferimentos causados por explosivos enquanto realizavam uma operação de resgate no sul do enclave. As Forças de Defesa de Israel sustentam que os paramédicos foram visados por serem membros do Hamas. No entanto, o material gráfico disponível mostra que esta versão não se sustenta.

O bombardeamento de hospitais sob o pretexto de que combatentes do Hamas estavam ali escondidos tem sido outro das tónicas destes dois anos de genocídio, algo sistémico e normalizado. Para além das vidas perdidas, a população de Gaza ficou sem assistência médica essencial. Segundo o direito internacional, tais ataques são considerados crimes de guerra.

Declarada fome, a primeira no Médio Oriente

A fome também foi um dos protagonistas dos últimos dois anos, especialmente nos últimos meses. Um relatório publicado a 22 de agosto pela Forensic Architecture e pela World Peace Foundation confirmou o que já se sabia: Israel usou – e meses depois continua a usar – a fome como arma de guerra em Gaza e como estratégia não só para matar palestinianos, mas também para desumanizar a população e desintegrar a sociedade.

Desde então, não param de surgir imagens de crianças e adultos subnutridos. A UNICEF afirma ter tratado, desde o início do genocídio, mais de 8.600 crianças com subnutrição aguda grave e 37.000 com subnutrição moderada. Esta restrição alimentar, proibida pelo direito internacional, obrigou milhares de pessoas a deslocarem-se do norte para o sul, algo ambicionado por Israel, que pretende estabelecer uma “zona humanitária” no sul do enclave. Várias organizações internacionais já alertaram para a possibilidade de estas áreas se tornarem verdadeiros campos de concentração. Estima-se que, desde 18 de março de 2025, mais de um milhão de pessoas tenham sido deslocadas à força devido à fome e aos bombardeamentos.

Supostamente para aliviar a fome, a Fundação Humanitária de Gaza foi lançada no final de maio deste ano. Esta iniciativa, com origem em Israel e nos Estados Unidos, consistiu na criação de uma série de postos de racionamento. Estes locais, onde a população palestiniana deveria recolher alimentos, tornaram-se, desde a sua criação, ratoeiras. Em inúmeras ocasiões, o exército israelita aproveitou a oportunidade para disparar sobre os residentes de Gaza enquanto estes aguardavam na fila para receber as suas rações.

Desde 18 de março de 2025, o bloqueio ao fornecimento de alimentos tem sido acompanhado por um bloqueio ao fornecimento de água potável, medicamentos e combustível, deixando a população de Gaza praticamente desamparada. Sob o pretexto de que o Hamas estava a desviar a ajuda humanitária prestada pela UNRWA, facto não comprovado, Israel tem utilizado o bloqueio para forçar a população de Gaza ao colapso.

A divulgação do relatório da Forensic Architecture e da World Peace Foundation coincidiu com a divulgação, no mesmo dia, de um outro relatório da Classificação Integrada da Segurança Alimentar (CIF, apoiado pelas Nações Unidas), que confirmou que o limiar da fome tinha sido atingido em Gaza, um acontecimento sem precedentes nesta região do mundo.

Cisjordânia: incursões, ocupação e violência

Enquanto tudo isto acontecia e continua a acontecer em Gaza, as ocupações ilegais por parte dos colonos israelitas e a violência contra a população palestiniana não cessaram na Cisjordânia; pelo contrário, aumentaram. As incursões violentas de extremistas sionistas têm sido constantes, de acordo com várias organizações no local.

Os colonos israelitas, instigados e encorajados pelos ministros supremacistas e de extrema-direita Bezalel Smotrich (Finanças) e Itamar Ben-Gvir (Segurança Nacional), não pararam de importunar os palestinianos na Cisjordânia. Apenas um facto: “A construção de habitações para israelitas na Cisjordânia atingiu níveis históricos em 2025, assim como os recordes de apropriação de terras palestinianas por Israel e os ataques lançados por colonos israelitas contra cidadãos palestinianos”, escrevia Joan Cabasés Vega, colaborador regular sediado no Líbano, no final de maio para o El Salto. Evidentemente, as mornas sanções impostas por países como a Grã-Bretanha e o Canadá aos colonos foram de pouca utilidade.

Em meados de agosto, o Democracy Now publicava a notícia sobre a aprovação, por parte do governo israelita, de um macro-projeto de colonatos com o objetivo de dividir ainda mais o território. Um dos colonatos envolve a construção de 3.400 novas casas e, se for implementado, irá cortar uma das poucas ligações geográficas entre Ramallah, no norte, e as cidades do sul, incluindo Belém.

As ocupações foram acompanhadas de violência. Desde outubro de 2023, segundo a UNRWA, mais de 960 pessoas foram mortas por colonos israelitas e forças armadas na Cisjordânia. Para além destas mortes, desde Janeiro de 2025, cerca de 40.000 palestinianos foram deslocados à força de campos no norte da Cisjordânia devido a incursões violentas das forças israelitas. Noutro artigo publicado em fevereiro, Cabasés escrevia: “o presidente da Câmara de Jenin, Muhammad Jarrar, afirma que 90% dos 17.000 residentes do campo de refugiados de Jenin partiram. O governador de Tulkarem, Abdallah Kameel, afirma que 75% dos 9.900 residentes daquele campo de refugiados foram deslocados à força”.

Na Cisjordânia, as demolições, a destruição sistemática de infraestruturas básicas – como canalizações de água e linhas de energia – e a detenção arbitrária de pelo menos 18.500 pessoas desde o início do genocídio, segundo a organização Addameer, têm feito parte do quotidiano dos palestinianos. Das 18.500 pessoas detidas durante estes dois anos na Cisjordânia, é importante referir que 1.500 são menores.

Dois anos, três flotilhas intercetadas

Antes de 7 de outubro de 2023, Gaza era descrita como “a maior prisão a céu aberto do mundo”. Desde 2007 que Israel impôs um bloqueio terrestre, marítimo e aéreo à Faixa, que poucos ousaram romper. Entre os militantes que o fizeram estavam os da Flotilha da Liberdade. No Verão de 2008, conseguiram fretar dois pequenos barcos de pesca. Quarenta e quatro pessoas de 17 países diferentes alistaram-se. Desde então, as flotilhas têm sido um símbolo da ação dos ativistas dos direitos humanos e pró-Palestina em todo o mundo.

Global Sumud Flotilla

Tudo o que precisas de saber sobre a flotilha para Gaza

25 de setembro 2025

Após o início do genocídio, a organização Flotilha da Liberdade lançou o seu primeiro desafio a Israel. Na primavera de 2024, centenas de pessoas reuniram-se em Istambul para navegar em três barcos, um deles de grandes dimensões, com a intenção de romper o bloqueio e entregar várias toneladas de ajuda humanitária e alimentos. Após duas semanas de pressão internacional, Israel conseguiu desarticular a partida dessa flotilha.

Desde então, ocorreu uma mudança estratégica. As tentativas subsequentes centraram-se em aumentar o número de embarcações e, sobretudo, torná-las mais leves e partir de pontos mais distantes, para evitar a sabotagem governamental de missões que não violam de forma alguma o direito marítimo. Os métodos escolhidos não mudaram: o objetivo é tentar chegar a Gaza para denunciar o bloqueio, mas a ordem não é para resistir violentamente a um possível ataque de soldados israelitas, algo para o qual é dada formação específica a todos os participantes nestas missões.

Em junho de 2025, o navio Madleen zarpava do porto italiano de Catânia com 12 ativistas a bordo e “toda a ajuda possível”, desde leite em pó para crianças a material médico. Entre os passageiros estavam a ativista sueca Greta Thunberg, o brasileiro Thiago Ávila e a representante política franco-argelina Rima Hassan. A 9 de junho desse ano, as forças armadas israelitas invadiram o navio em águas internacionais e detiveram ilegalmente os militantes da Flotilha. Um mês depois, em julho, o navio Handala foi invadido em condições semelhantes.

Também no Verão passado, foi lançada uma tentativa de Marcha para Gaza a partir do Cairo, no Egito, com a intenção de chegar a Rafah, onde milhares de camiões permanecem imobilizados devido à recusa de Israel em permitir a passagem de ajuda humanitária. Esta marcha, na qual o El Salto participou com um enviado especial, foi reprimida pelo governo de Abdel Fattah El-Sisi.

A mais recente tentativa de romper o bloqueio foi denominada Flotilha Global Sumud e é uma combinação de forças da Flotilha da Liberdade, da Marcha Global para Gaza, da Flotilha Maghreb Sumud e da Sumud Nusantara. Foi a flotilha com maior relevância internacional e a maior participação, com quase 500 pessoas em mais de quatro dezenas de embarcações. O ataque ilegal de Israel à flotilha, que culminou a 1 de Outubro, obrigou os governos europeus a tomarem uma posição e continua a manter em suspense as famílias e amigos daqueles que ainda se encontram detidos em instalações israelitas.

O mundo aponta o dedo a Israel

Enquanto as ações de Benjamin Netanyahu e de todo o seu governo permanecem impunes, a imagem do país está a ser prejudicada pelos crimes cometidos em Gaza. Desde as dezenas de manifestações ao longo dos anos, ao boicote à prova de ciclismo La Vuelta a España devido à participação de uma equipa israelita, à ampla exigência de expulsão de equipas israelitas de torneios desportivos internacionais e do Festival Eurovisão da Canção, o que parece claro é que o mundo está de olhos postos em Israel.

“A imagem exterior de Israel está completamente danificada; o país sai destes dois anos com uma imagem completamente destruída”, explica Rosa Meneses. “A pressão internacional aumentou drasticamente, e a impunidade com que agiu nos últimos dois anos começou a ser questionada. A sua falta de respeito pelo direito e pelas normas internacionais também foi assinalada”, observa a jornalista e arabista, que acredita que esta é a primeira vez que Israel, “que há anos desrespeita o direito internacional, sente a reprovação da opinião pública mundial”.

Graças a esta pressão, a 8 de setembro, o governo de Pedro Sánchez lançou uma série de nove medidas contra Israel, incluindo a aprovação urgente de um decreto-lei real que consolida legalmente o embargo de armas ao país e a proibição legal e permanente de comprar e vender equipamento militar aos israelitas.

Entre as nove medidas anunciadas estavam também a proibição do trânsito pelos portos espanhóis de todos os navios que transportam combustível destinado às Forças de Defesa de Israel; a proibição da importação de produtos produzidos nos territórios ocupados; a proibição do acesso ao território espanhol a pessoas que participaram ou estão a participar diretamente no genocídio; o reforço do apoio à Autoridade Palestiniana através do aumento do número de tropas na missão de assistência fronteiriça da União Europeia em Rafah; o lançamento de novos projetos de colaboração em agricultura, segurança alimentar e cuidados de saúde; e um aumento da contribuição de Espanha de 10 milhões de euros para a UNRWA.

“Uma coisa é proteger o teu país, proteger a tua sociedade, e outra bem diferente é bombardear hospitais e matar crianças inocentes à fome. [...] Isto não é legítima defesa; nem sequer é um ataque; é exterminar um povo indefeso, é violar todas as leis do direito humanitário”, disse Sánchez nesse dia. As reações do outro lado do Mediterrâneo foram rápidas, com o ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Gideon Sa'ar, a acusar o presidente espanhol de ter uma “retórica desenfreada e cheia de ódio” e de “perpetuar crimes contra o povo judeu”. O ministro classificou a conduta de Sánchez e dos seus ministros como “antissemita”.

Genocídio

Israel na Eurovisão: RTP no coro calado dos cúmplices

por

Gil Ribeiro e Beatriz Realinho

16 de setembro 2025

Atualmente, a Segunda Vice-Presidente do Governo, Yolanda Díaz, e o Ministro da Juventude, Sira Rego, estão impedidos de entrar em solo israelita. Há poucas semanas, Jaume Collboni, atual presidente da Câmara de Barcelona, também foi impedido de entrar no aeroporto de Telavive por “histórico de difamação”. O socialista tinha uma reunião agendada com os presidentes das Câmaras de Belém e Ramallah. Ao contrário de Madrid, onde a dupla Almeida-Díaz Ayuso continua a apoiar o governo de Netanyahu, Barcelona rompeu relações institucionais com o Governo de Israel a 30 de maio, bem como o seu acordo de amizade com Telavive, iniciado em 1998, “até que o respeito pelo direito internacional e pelos direitos fundamentais do povo palestiniano seja restaurado”.

No âmbito empresarial, há poucos dias, as Nações Unidas atualizaram a sua lista de empresas que operam nos territórios ocupados. No caso de Espanha, e apesar dos múltiplos alertas do Ministro dos Direitos Sociais, Consumo e Agenda 2030, Pablo Bustinduy, a ACS de Florentino Pérez, a empresa ferroviária basca CAF, a empresa pública de engenharia INECO e a Empresa Espanhola de Montagem Industrial (SEMI) continuam a operar em territórios ocupados. Todas estas empresas estão ligadas a projetos ferroviários israelitas, como o chamado “comboio do apartheid”, que liga Jerusalém aos colonatos ilegais na Cisjordânia.

O mundo depois de Gaza

“Gaza é um colapso moral absoluto. O mundo que existia antes de Gaza pertence a outra era”, afirma o investigador Pankaj Mishra em O Mundo Depois de Gaza: Uma Breve História (Galaxia Gutenberg, 2025). E esse parece ser um sentimento generalizado.

Rosa Meneses acredita também que o que aconteceu e está a acontecer em Gaza indica a atual “perda da bússola moral”. “Se não conseguimos pôr fim a isto, a esta atrocidade, está em causa a nossa moralidade”, sublinha; “há muito para reparar e muito para refletir. Muitas linhas vermelhas foram ultrapassadas e teremos de considerar se queremos ou não alterar as regras estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial”. E ela conclui: “Em Gaza, todos os princípios morais foram enterrados.”

 

Texto publicado originalmente no El Salto.