Dia Internacional da Memória do Holocausto

Numa época de genocídios recorrentes, “Nunca Mais” é “Nunca Mais para Ninguém”

27 de janeiro 2025 - 9:51

O 80º aniversário da libertação de Auschwitz confronta-nos com a realidade de que o nosso tempo é tragicamente um tempo de genocídio recorrente e atual.

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Judeus pela Paz e Justiça

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Vagão de comboio de mercadorias junto ao campo de concentração.
Um dos símbolos do 80.º aniversário da libertação do campo de concentração e extermínio nazi alemão de Auschwitz será um vagão de comboio de mercadorias, que será colocado diretamente em frente ao portão principal do campo de Auschwitz II-Birkenau. Foto do Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau.

Numa época de genocídios recorrentes, o 80º aniversário da Libertação de Auschwitz-Birkenau é um marco fundamental para afirmar, mais do que nunca, o seu significado humanista universal.

Os campos de concentração e de extermínio nazis de Auschwitz-Birkenau tornaram-se com razão o símbolo predominante do Holocausto, por terem sido palco do maior assassínio em massa da história num único local.

De acordo com Franciszek Piper (uma das maiores autoridades na história dos campos), dos 1,3 milhões de pessoas enviadas para Auschwitz, 1,1 milhões foram assassinadas. O número de vítimas inclui 960 mil judeus (865 mil dos quais foram gaseados à chegada), 74 mil polacos não judeus, 21 mil ciganos e sinti, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos e cerca de 15 mil outras pessoas. Esta matança em escala industrial foi levada a cabo através de gaseamento, fome, exaustão, doenças, execuções e espancamentos, bem como experiências médicas insanas e sádicas.

Em 2005, as Nações Unidas designaram o dia 27 de janeiro - aniversário da libertação dos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau pelo exército soviético - como Dia Internacional da Memória do Holocausto (Resolução 60/7 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1 de novembro de 2005).

Por conseguinte, neste dia, cabe-nos a todos reconhecer e recordar o horror do Holocausto e homenagear todas as suas vítimas.

O assassinato metódico em Auschwitz foi um fragmento do projeto hitleriano global para a “Solução Final” da “questão judaica”. Os nazis estiveram, de facto, muito perto de atingir o seu objetivo, eliminando cerca de 6 milhões de judeus - um terço da população judaica mundial da época. Felizmente, o regime nazi-fascista foi derrotado na sequência de uma guerra mundial devastadora, antes que este objetivo fosse alcançado. Porém, o Holocausto - ou Shoah, como é referido em hebraico – permanece um trauma coletivo partilhado e uma referência primordial para os judeus de todas as convicções religiosas, ideológicas e políticas.

Este trauma levou muitos judeus a interpretar o Holocausto como símbolo da vitimização particular do povo judeu na história moderna. As correntes sionistas omnipresentes (de todo o espetro político, da liberal-trabalhista à revisionista) e as forças hegemónicas (do governo do Estado israelita às organizações internacionais de lobbying) apropriaram-se do Holocausto como justificação para um projeto nacionalista e exclusivista beligerante, concretizado na criação e consolidação do Estado de Israel e na legitimação da Naqba palestiniana e da ocupação ainda em curso.

Mas, por outro lado, a memória dolorosa do Holocausto, a par das suas consequências que permanecem vivas até aos dias de hoje, levou outros judeus a assumir uma perspetiva universalista e a encará-lo como herança, não só do povo judaico, mas do mundo inteiro e da humanidade no seu conjunto. Independentemente da sua posição quanto à existência e formato de um Estado (democrático) de Israel, estes judeus têm em comum a defesa da paz e da justiça na Palestina e são solidários com o povo palestiniano na sua legítima luta pela autodeterminação e pela liberdade.

Hoje, estas diferenças traçam as linhas de divisão fundamentais entre os judeus de todo o mundo e exigem que aqueles que, como nós, estão comprometidos com a paz e a democracia, se refiram ao Holocausto nos termos universalistas e humanistas da resolução das Nações Unidas para este dia, condenando “sem reservas todas as manifestações de intolerância religiosa, incitamento, assédio ou violência contra pessoas ou comunidades com base na origem étnica ou crença religiosa, onde quer que ocorram” e mobilizando ativamente “a sociedade civil para a memória e educação do Holocausto, a fim de ajudar a prevenir futuros atos de genocídio”.

O 80º aniversário da libertação de Auschwitz confronta-nos com a realidade de que o nosso tempo é tragicamente um tempo de genocídio recorrente e atual. Sem recorrer a analogias forçadas, os exemplos são demasiados e, embora haja reticências na utilização da palavra, as provas são inegáveis - de Myanmar ao Sudão, passando pela Ucrânia, Xinjiang e Palestina.

Neste dia, todos nós devemos reafirmar o verdadeiro significado da resolução da ONU; não podemos fazer escolhas entre uma panóplia de genocídios que precisam todos de ser evitados. No entanto, como judeus coletivamente empenhados nos direitos humanos para todos, a par da paz e da democracia, e porque Israel procura legitimar-se em nome de todos os judeus, reconhecemos a nossa responsabilidade especial de agir em solidariedade com o povo palestiniano para pôr fim à campanha claramente genocida de Israel em Gaza e ao apartheid e à ocupação em geral na Palestina.

Neste contexto, repudiamos veementemente o convite feito pelo Governo polaco a Benjamin Netanyahu, ainda Primeiro-Ministro de Israel, acusado e procurado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, para as cerimónias do 80º aniversário da libertação de Auschwitz, assim como o seu compromisso de não o prender, caso ele compareça. Tal gesto não só contradiz as obrigações da Polónia enquanto membro fundador signatário do TPI, como também ridiculariza as próprias comemorações. Esta figura não representa o povo judeu, mas sim o Estado israelita, que foi também acusado de forma credível em tribunal internacional do mesmo crime de genocídio pela sua conduta em Gaza.

Salientamos ainda o carácter particularmente perverso de que se tem revestido o cessar-fogo em curso, com o recrudescer da violência contra palestinianos na Cisjordânia, numa manobra que não poderá passar impune aos olhos da comunidade internacional e que exige uma condenação firme e inequívoca. A violência israelita em Gaza e na Cisjordânia faz parte integral de um projeto único cuja finalidade foi cinicamente revelada na véspera desta efemeridade pelo novo Presidente dos EUA: a ‘limpeza’ decisiva de um milhão e meio de palestinianos de Gaza para países circundantes. O perigo iminente é que a limpeza étnica proposta por Trump para Gaza se aplique a curto prazo para a Palestina inteira.

Por isso, afirmamos que, no espírito da resolução das Nações Unidas, o respeito da memória das vítimas do Holocausto exige de nós – enquanto judeus - e de todos um empenho reforçado para prevenir futuros atos de genocídio, nomeadamente na Palestina.

“Nunca mais” significa ‘nunca mais para ninguém’.


Lisboa, 27 de Janeiro de 2025,
Judeus pela Paz e Justiça