O presidente dos EUA, Donald Trump, voltou à estratégia do bullying com chefes de Estado de outros países que recebe na Casa Branca. Depois do presidente ucraniano, Zelensky, agora foi a vez do sul-africano Cyril Ramaphosa, atacado com a teoria do “genocídio branco” que estaria a ocorrer no seu país.
Numa “emboscada” cuidadosamente preparada esta quarta-feira, Trump passou um vídeo que, segundo ele, provava o que se passaria sob o que considerou ser “o oposto do apartheid”. O presidente norte-americano e o seu aliado de origem sul africana Elon Musk, o homem mais rico do mundo também presente no encontro, têm divulgado a mentira de que está a acontecer uma perseguição sistemática por parte do Estado aos afrikaners, a minoria que tem origem no colonizadores holandeses da região e que continua a ser uma das camadas mais privilegiadas da população do país.
Enquanto corta a entrada de milhares de pessoas com o estatuto de refugiado já reconhecido e não permite sequer novas avaliações, Trump decidiu abrir exceção para os afrikaners que considera estarem a ser perseguidos. Está a oferecer-lhes estatuto de refugiados e condições que nega a populações realmente perseguidas de outros pontos do mundo.
Independentemente dos factos, Trump garantiu: “temos vários milhares de histórias”, isto imediatamente antes de ordenar aos funcionários da Casa Branca: “desliguem as luzes e passem isso”. O vídeo em questão era uma montagem que mostrava o ex-presidente Jacob Zuma a cantar uma canção de protesto da altura da luta anti-apartheid, intitulada “kill the Boer”, e depois imagens que Trump alegava serem de sepulturas de mais de um milhar de agricultores afrikaners. Em seguida, mostrou artigos de jornais que noticiavam assassinatos, ao mesmo tempo que comentava “morte, morte, morte, morte horrível”.
Ramaphosa manteve a compostura enquanto o “espetáculo” montado se desenrolava, não demonstrando qualquer hostilidade, respondeu dizendo que a canção e as expressões utilizadas no vídeo não representam a política do seu governo, que nunca tinha visto as imagens daquele cemitério e que iria descobrir do que se tratava e que deveriam “falar sobre isto muito calmamente”. Sobre as notícias de crimes, reconheceu que as taxas de homicídio são muito elevadas mas contrapôs que a maior parte das vítimas são negras.
Trump foi insistindo que “ninguém sabe nada disso” porque não é “nunca noticiado” mas “o que sabemos é que estamos a ser inundados de pessoas, agricultores brancos da África do Sul, e isso é um grande problema” e “uma coisa muito triste de se ver”. Por inundação referia-se aos primeiros 50 afrikaners já recebidos pelo governo com honras oficiais.
Ramaphosa vinha à partida preparado para dar uma imagem diferente do seu país, mais consentânea com os valores de Trump. A delegação sul-africana ao encontro incluía figuras de destaque brancas como os melhores jogadores de golfe do país, Ernie Els e Retief Goosen, o ministro da Agricultura John Steenhuisen e o homem mais rico do país, Johann Rupert. Também procurava apelar aos bolsos de Musk, oferecendo-lhe um contrato para a sua rede de satélites Starlink operar na África do Sul.
Numa conferência de imprensa posterior, o presidente da África do Sul descreveu a reunião, que continuou depois destes momentos atribulados à porta fechada, como um sucesso para o comércio e o investimento. Reiterou aí a inexistência de um genocídio no seu país e tentou minimizar o ataque de Trump dizendo que ele até respondeu a uma pergunta dizendo que “não estava convencido” sobre a questão do genocídio, pelo que, garante Ramaphosa, “há dúvidas” na cabeça de Trump sobre isto.
África do Sul
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Sobre o que não há dúvidas é a desigualdade no país. Uma análise oficial de 2017 mostrava que os sul africanos negros detêm apenas 4% das terras do país, a maior parte das quais continuam nas mãos de descendentes dos antigos colonizadores. As populações brancas, e afrikaners em particular, longe de serem perseguidas, continuam a estar muito acima em todos os aspetos económicos. A Review of Political Economy publicou um artigo no que se estima que os brancos do país têm tipicamente vinte vezes mais riqueza que os sul africanos negros e a taxa de desemprego destes é de 46,1%, comparada com 9.2% dos brancos.
A mentira do vídeo do cemitério dos milhares de assassinados não durou muito
Entretanto, a peça central da montagem vídeo mostrada por Trump já foi desmentida. Ramaphosa tinha prometido que ia investigar o que se passava no tal cemitério com cruzes das vítimas do “genocídio branco” e tinha perguntado a Trump onde era (ao que este respondeu apenas “na África do Sul”). Mas não foi preciso muito tempo para a verdade começar a vir ao de cima.
Uma análise do The New York Times mostrou que o vídeo era de um funeral de um casal de agricultores assassinados e que tinha sido filmado a 5 de setembro de 2020, em Newcastle, África do Sul. As cruzes que se veem ao longo do percurso tinham aí sido colocadas, como mostrou um jornal sul africano na altura, como forma de homenagem. Várias imagens nas redes sociais mostram as pessoas a porem-nas e uma simples análise ao Google Street View confirma que já não estão no local, pois após a cerimónia fúnebre foram retiradas, não correspondendo a campas de ninguém, ao contrário do que Trump afirmou.