A Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) poderá ser o palco de uma votação histórica e decisiva para o fim do genocídio em Gaza no próximo 18 de setembro, data que marca o fim do prazo de um ano dado a Israel para cumprir as determinações do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). O TIJ considerou em julho de 2024 que a ocupação por Israel dos territórios ocupados palestinianos é “ilegal” e apelou à suspensão imediata da construção de colonatos, condenando o controlo de Israel sobre as terras que conquistou há 57 anos.
Gaza
Médicos Sem Fronteiras: Israel ditou “sentença de morte para um milhão de palestinianos“
Na sequência deste parecer do TIJ, a Assembleia Geral da ONU adotou (com o voto favorável de 124 países membros), a 18 de setembro de 2024, uma resolução exigindo que Israel pusesse fim à sua presença nos Territórios Palestinianos Ocupados e deu o período de 12 meses a contar dessa data para Israel concretizar esta saída. Exigiu também que Israel cumprisse sem demora todas as suas obrigações legais ao abrigo do direito internacional, incluindo as estipuladas pelo TIJ de “retirar todas as suas forças militares do Território Palestiniano Ocupado e dos seus espaços aéreo e marítimo”, bem como deliberou que Israel não continuasse a implementar novos colonatos e evacuasse todos os colonos do Território Palestiniano Ocupado. A resolução impunha igualmente a Israel a devolução das “terras e outros bens imóveis, bem como todos os bens apreendidos a qualquer pessoa singular ou coletiva desde o início da ocupação em 1967, e todos os bens culturais e ativos retirados aos palestinianos e às instituições palestinianas”, a reparação dos “danos causados a todas as pessoas singulares e coletivas afetadas no Território Palestiniano Ocupado” e a permissão para que “todos os palestinianos deslocados durante a ocupação possam regressar ao seu local de residência original”.
Para além disto, nessa mesma resolução era exigido a Israel que cumprisse as medidas provisórias impostas por uma outra decisão de 2024 do TIJ, no processo relativo à aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio7 (África do Sul contra Israel) em relação ao direito do povo palestiniano na Faixa de Gaza de ser protegido de todos os atos abrangidos pelos artigos II e III da Convenção.
Como é fácil de constatar, Israel não só incumpriu todas estas exigências ao longo destes 12 meses dados pela AGNU como ainda intensificou o ritmo do genocídio da população palestiniana e ocupação de facto de novos territórios, seja através da ocupação militar ou da autorização para construção de novos colonatos em territórios palestinianos ocupados. Assim, com Israel em incumprimento, a Assembleia Geral poderá agora ativar medidas sem precedentes para impor responsabilização a Israel. É isso que pretende a iniciativa internacional Lifeline for Palestine.
Lifeline for Palestine: uma campanha global para parar o genocídio
A Lifeline for Palestine é uma iniciativa internacional que surgiu da constatação de que Israel não dá sinais de querer parar o genocídio que está a levar a cabo em Gaza - onde o número de mortos civis atingiu níveis sem precedentes e bairros inteiros foram totalmente apagados da face da terra - e na Cisjordânia, onde o número de palestinianos forçados a sair das suas terras tem vindo a crescer, tal como a autorização do governo israelita para a implementação de novos colonatos, anexando de facto novos territórios.
Esta iniciativa, que foi lançada após a publicação do relatório de Francesca Albanese, “From Economy of Occupation to Economy of Genocide” (onde se expõem as redes económicas que lucram com a destruição de Gaza e o genocídio do povo palestiniano), constitui uma campanha global coordenada, orientada para a ação, procurando transformar a indignação dos cidadãos em poder político através da pressão sobre os seus governos para tomarem as medidas necessárias a parar o genocídio e a ocupação, quer no âmbito nacional quer no seio das instituições internacionais como a ONU.
Genocídio
Como os israelitas transformaram a negação das atrocidades numa arte
Ron Dudai
É apoiada e promovida por um vasto conjunto personalidades, como Jill Stein, Jeffrey Sachs, Miko Peled, Omar Suleiman, Susan Abulhawa, Medea Benjamin, Yanis Varoufakis, Thomas Piketty, Jayati Ghosh, pela própria Francesca Albanese (a título pessoal), e por organizações como sindicatos europeus e latino-americanos, o European Legal Support Center, o Palestinian BDS National Committee (BNC) ou a International Association of Democratic Lawyers.
A Lifeline for Palestine tem como objetivos principais parar o genocídio atualmente em curso (através de um cessar-fogo imediato e permanente em Gaza e fim das incursões militares na Cisjordânia); forçar Israel a por fim ao bloqueio a Gaza, restabelecendo a liberdade de circulação de pessoas e bens; criar mecanismos internacionais de proteção, incluindo o possível envio de uma força internacional de proteção sob mandato da ONU para garantir a segurança dos civis palestinianos e a entrada de ajuda humanitária; implementar um embargo de armas e um conjunto de sanções contra Israel (incluindo a suspensão de Israel da Assembleia Geral, tal como aconteceu com a África do Sul durante o regime do apartheid) até que este cumpra o direito internacional humanitário; julgar os responsáveis pelo genocídio no Tribunal Penal Internacional e em tribunais nacionais ao abrigo da jurisdição universal por crimes de guerra e crimes contra a humanidade; e conseguir o reconhecimento da soberania palestiniana e um plano concreto para desmantelar o regime de apartheid e os colonatos ilegais.
Para concretizar estes objetivos a iniciativa organiza-se em torno de três eixos de ação:
Mobilização popular: dias globais de protesto, vigílias, bloqueios simbólicos e ações diretas contra fabricantes de armas, bancos e governos cúmplices.
Pressão política: campanhas coordenadas de lobby junto de parlamentos, instituições da UE e Assembleia Geral da ONU, para aprovar resoluções e medidas concretas como, por exemplo, o Uniting for Peace para superar os bloqueios no Conselho de Segurança da ONU.
Pressão económica: apoio às campanhas de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), ativismo de acionistas e ações judiciais contra empresas envolvidas na ocupação (como por exemplo as empresas de tecnologias de vigilância) ou que lucrem com o genocídio (como por exemplo as empresas de armamento).
O mecanismo “Uniting for Peace”
Segundo os organizadores da iniciativa, a medida chave para parar o genocídio e a ocupação está na Resolução 377 (V) da Assembleia Geral da ONU, adotada em 1950 e conhecida como “Uniting for Peace”. Este mecanismo foi criado para ultrapassar bloqueios no Conselho de Segurança, onde o direito de veto de países como os EUA, Rússia, China, França e Reino Unido tem impedido a adoção de resoluções em situações de ameaça à paz internacional.
Em termos práticos, quando o Conselho de Segurança não consegue agir devido ao veto de um dos membros permanentes, a Assembleia Geral pode convocar uma Sessão de Emergência e recomendar medidas coletivas, incluindo uso de sanções económicas e até de força, para “manter ou restaurar a paz e segurança internacionais”.
Foi exatamente este mecanismo que permitiu, em 1950, a aprovação da resolução que autorizou a intervenção internacional na Guerra da Coreia ou, nos anos 1980, a adoção de uma série de resoluções que isolaram diplomaticamente a África do Sul, impondo sanções económicas e embargo de armas que contribuíram para o fim do regime de apartheid.
Flotilha para Gaza
Segundo barco atacado por drone, Israel bombardeia Gaza e ataca no Qatar
A utilização do procedimento “Uniting for Peace” contra Israel significaria um passo político de enorme peso: a comunidade internacional declararia formalmente que o Conselho de Segurança falhou e que é necessário agir de forma coletiva e vinculativa.
Os membros da iniciativa dizem que mais de 130 países — bem acima da maioria de dois terços exigida para aprovar tal procedimento — já se mostraram favoráveis à aplicação de medidas contra Israel caso este continue a violar as ordens do TIJ. Esta maioria dá à Assembleia Geral poder para aprovar resoluções robustas que, embora tecnicamente não vinculativas, têm enorme força política e moral e, na prática, moldam a conduta de Estados e instituições internacionais.
“Temos os votos para avançar e temos o mecanismo que os EUA não podem bloquear. Esta é uma oportunidade para transformar promessas em ação concreta”, afirma Jill Stein.
O que podem fazer cidadãos e governos
Para concretizar estas propostas, a iniciativa aposta na mobilização de cidadãos e na sua pressão política sobre governos nacionais, de modo a garantir que votem a favor das medidas na Assembleia Geral.
Os organizadores da iniciativa pedem aos cidadãos que enviem cartas, petições, emails aos seus deputados, parlamentos, ministérios dos Negócios Estrangeiros, exigindo que votem favoravelmente resoluções na Assembleia Geral da ONU que apoiem os objetivos da campanha, bem como exigindo transparência aos seus governos sobre as suas votações na ONU e a justificação pública dos seus votos.
Pedem ainda que os cidadãos participem ativamente em todo o tipo de iniciativas como manifestações públicas, grupos de vigilância ou movimentos locais de solidariedade.
Por outro lado, a iniciativa aconselha os cidadãos de todos os países a desinvestir poupanças pessoais ou fundos de instituições (clubes, universidades, fundos de pensão) das empresas que fornecem armas ou obtêm lucro direto da guerra em curso e defendem que os cidadãos apoiem os media independentes na tarefa de divulgação de informação correta às comunidades e de combate à desinformação.
O Lifeline for Palestine disponibiliza na sua página oficial ferramentas para envio automático de cartas a governos e parlamentares, bem como materiais de sensibilização para partilha em redes sociais.
Por seu turno, os governos podem, segundo a iniciativa, apoiar medidas no quadro da Uniting for Peace ou resoluções similares a serem votadas na AG da ONU, patrocinando o texto final, votando a favor e, se aprovado, implementando rapidamente as medidas recomendadas — incluindo sanções bilaterais e suspensão de cooperação militar com Israel.
Podem ainda declarar apoio público a resoluções de paz, reconhecimento da Palestina e medidas humanitárias, suspender o comércio de armas, cooperação militar ou financiamento a empresas envolvidas no conflito que violem direitos humanos, cooperar com as investigações e os tribunais internacionais, reconhecer formalmente o Estado da Palestina ou destinar ajuda humanitária sem intermediários que limitem a ação.
A urgência do momento
Atualmente, desde 9 de setembro, está a decorrer a 80ª Sessão da Assembleia Geral da ONU que entrará na sua semana de intervenções dos chefes de Estado a partir de 22 de setembro. A 18 de Setembro próximo terminará o período de 12 meses dado a Israel para terminar a ocupação e as ações militares. Neste contexto, os dias 23 a 29 de setembro podem ser decisivos, sendo espectável que os Estados membro votem novas resoluções ou adotem compromissos para acelerar o alcançar de um cessar-fogo, da proteção dos civis e da responsabilização de Israel.
A iniciativa enquadra esta luta como uma corrida contra o tempo: cada dia de inação significa mais mortos, mais deslocados e maior normalização do genocídio como ferramenta política. Sublinha que está em causa a própria credibilidade da comunidade internacional e que a impunidade institucional é a maior responsável pelo fim do direito internacional. Segundo ela, ou se age agora ou arrisca-se a que a atuação fora do quadro do direito internacional se consolide estruturalmente como modelo reconhecido de violência de Estado.
Por fim, a Lifeline for Palestine lembra-nos que a neutralidade é cumplicidade e que a História julgará o silêncio de hoje — tal como hoje julgamos os que se mantiveram calados perante o Holocausto, o genocídio no Ruanda ou o massacre de Srebrenica. Parafraseando o título do recente livro de Omar El Akkad, a iniciativa adverte que “dentro de alguns anos todos dirão que sempre se opuseram a este genocídio. Mas é agora que as pessoas de consciência devem agir.”