Tentarei, no escrito que se segue, não incorrer no erro do idealismo quanto ao papel do indivíduo na história, concretamente quanto ao papel de Álvaro Cunhal na história do PCP. É sabido que o homem é as suas circunstâncias e a capacidade (ou não) de, em cada época histórica, as aproveitar ou condicionar. E que é também o conjunto das mulheres e dos homens que o rodeiam, que discutem, que se lhe opõem, ou que o apoiam e o fazem cumprir. Dito isto, interessa igualmente não cair no mecanismo de sinal contrário que desconhece ou subestima o decisivo papel que certas personagens, enquanto tais, podem ter no curso dos acontecimentos. E é neste quadro da iniciativa de Álvaro Cunhal que, a meu ver, marcarão decisivamente o perfil político-ideológico e organizativo do Partido Comunista Português (PCP) no período histórico da sua vida clandestina, compreendido entre o início dos anos 1940 e a queda da ditadura, em 1974. E provavelmente para além disso.
O primeiro passo respeita à intervenção de Álvaro Cunhal no processo de “reorganização”/refundação do PCP quando, em 1942, ascende ao Secretariado e se torna a figura liderante na direcção clandestina. O segundo liga-se à chamada “correcção do desvio de direita” desencadeada após a fuga de Peniche, em Janeiro de 1960 e que, em larga medida, determina a urgência da sua arriscada concretização. O terceiro, geralmente pouco enfatizado, tem a ver com a decisão do recém-formalizado secretário-geral do PCP e da direcção no interior de que Álvaro Cunhal e a Comissão Política deviam abandonar o país e instalar-se no estrangeiro, colocando-se na dependência logística e financeira dos partidos comunistas da URSS e do bloco soviético, com tudo o que isso implicava.
A Refundação
O processo de “reorganização”/refundação do PCP, em 1940/42, tem sido objecto de estudo nas obras de José Pacheco Pereira1 e João Madeira2 e não carece de ser aqui detalhado. O que convém compreender é que esse processo começa com um propósito e se conclui com outro. Inicia-se sob o impulso da Organização Prisional Comunista do Tarrafal, recorrendo a alguns quadros amnistiados do Tarrafal e de Angra do Heroísmo, como Júlio Fogaça ou Militão Ribeiro, com o objectivo de operar uma cisão num PCP cuja direcção, segundo a Internacional Comunista (IC), estava dominada por “provocadores” a soldo da polícia política. Tratava-se de uma “limpeza” contra o “grupelho provocatório” que permanecera na direcção do PCP, sem verdadeira crítica política ou ideológica à sua orientação, visando instalar na liderança do partido um grupo de confiança da IC. Cunhal é inicialmente marginalizado neste processo (até pelas ligações que tivera à direcção sob ataque) e é chamado ao Secretariado Geral do PCP em 1942, altura em que Fogaça volta a ser preso e é preciso encontrar alguém com arcaboiço intelectual e teórico para o substituir nas tarefas de direcção ideológica que desempenhava. Cunhal torna-se rapidamente o indiscutível dirigente táctico do PCP. E vai imprimir à cisão/“reorganização” em curso o carácter de uma verdadeira redefinição política e organizativa do partido que permite falar não numa simples purga mais ou menos encomendada pela IC - como pretendiam os “reorganizadores” iniciais - mas num processo refundacional que passa por três domínios principais:
- Mergulhar ousadamente no ambiente de revolta generalizada contra os brutais efeitos sociais da “economia de guerra” do regime - duramente pagos pelas classes trabalhadoras e por importantes sectores de empregados e funcionários das “classes médias”; potenciar a expectativa de vitória dos aliados que começa a despontar nos finais de 1942 e o crescente prestígio popular do Exército Vermelho e da URSS pós-estalinegrado; aproveitar esse caldeirão de descontentamento e esperança para implantar e reconstruir o PCP à escala nacional. O novo PCP separa-se radicalmente da antiga direcção ainda existente, colada às preocupações da “tranquilidade social” da embaixada britânica e denunciando como “provocações trotsquistas” o empenho dos refundadores na agitação e na luta de massas3.
- Sintomaticamente, Cunhal e os seus apoiantes colocam a “célula de empresa” como o novo eixo reorganizativo do partido, rompendo com a tradição organizativa fundada no local de habitação. Ao mesmo tempo, impulsionam, na linha do VII Congresso da IC, o entrismo nos sindicatos nacionais - que conhecerá, em 1945, uma das suas raras conjunturas de sucesso no salazarismo, prontamente reprimida pelo aparelho corporativo. Com a mesma preocupação de viragem para a luta popular, irão dissolver o espaço tribal e sectário da Federação das Juventudes Comunistas, dando aos jovens comunistas tarefas unitárias e “de massas” no campo cultural ou no trabalho unitário da juventude (é o caso do MUD Juvenil a partir de 1945-46).
- Essa viragem para a luta social antifascista na conjuntura da guerra que o Eixo começava a perder é acompanhada por uma significativa mudança na cultura organizativa: cria-se um corpo de funcionários profissionais e uma infra-estrutura de casas de apoio e de tipografias clandestinas obedecendo a rígidas e severas normas conspirativas. Tão rígidas e estereotipadas que se voltarão contra a segurança da organização, mal a polícia as conhece e divulga pelas autoridades de todo o país, mas que permitiram ao PCP, mesmo nos momentos de refluxo mais acentuados, manter a saída do seu órgão central sem interrupções e a continuidade mínima da sua acção clandestina. Esta “cultura de clandestinidade”, só realmente implantada com a “reorganização”/refundação, permite ao PCP uma capacidade de resistência, pelo menos até aos anos de 1970, que nenhuma força política de oposição ao regime demonstrara até à data.
Estas mudanças vão provocar, como se compreende, um duplo e decisivo efeito no papel do PCP. Pela primeira vez, transformaram-no num partido à escala nacional (na segunda metade dos anos 1940, estava organizado clandestinamente do Minho ao Algarve), duradouramente implantado no terreno social do operariado e das zonas populares de Lisboa, no corredor industrial de Vila Franca de Xira, na Margem Sul do Tejo e nas regiões de assalariados rurais dos “campos do sul”. Ou seja, o PCP torna-se uma força política incontornável na resistência antifascista, nos processos unitários que se reiniciam em 19434 sob a hegemonia organizativa dos comunistas (aliás pacificamente aceite até aos primeiros efeitos disruptivos da Guerra Fria, a partir de 1947) e, sobretudo, em qualquer processo de transição para a democracia.
Com a refundação, o PCP passa do grupo de agitação e propaganda que fora nos anos 1930 ao partido político de influência nacional que, mesmo nas condições de clandestinidade em que operava, não mais deixaria de ser.
O “Desvio de Direita”
Sabe-se que a urgência do perigoso lance da fuga do Forte de Peniche por parte de Álvaro Cunhal e de um grupo de dirigentes do partido, seus companheiros de prisão, foi pressionada, em boa medida, pela necessidade de dar combate ao que, na terminologia do PCP, se viria a chamar o “desvio de direita”, imperante na direcção do partido na segunda metade dos anos 1950.
A persistência nas esferas dirigentes do PCP de uma linha política do tipo da que Cunhal voltava a criticar em 1960 era uma herança antiga do partido. O atentismo face às iniciativas políticas e militares do republicanismo radical ou do conspirativismo putshista, a hegemonia ideológica republicanista e maçónica no frentismo ensaiado dos anos 1930, o esbatimento da conflitualidade de classe para não afugentar os “portugueses honrados”, a defesa nacionalista do património colonial ou a anulação dessa questão com idêntico propósito, o privilegiar do legalista e do pacifismo (ou da sua outra face, o golpe palaciano) tinham frequentemente marcado a linha política e tática do PCP ao longo dos anos 1930, época de resistência marcada pela clara hegemonia política e ideológica do republicanismo reviralhista, sempre com forte influência nas fileiras do PCP.
Essas concepções regressam à tona como corrente no fim da guerra, na conjuntura curta mas intensa de ilusões numa milagrosa transição para a democracia operada pela vitória aliada. É a “política de transição” defendida no II Congresso Ilegal do PCP, em 1946, por alguns dos primeiros “reorganizadores”, como Júlio Fogaça ou Militão Ribeiro, e combatida pela direcção cunhalista com sucesso. Mas, com Cunhal preso em 1949; com o célebre XX Congresso do Partido Comunista da URSS (PCUS) a proclamar, em 1956, a era da “coexistência pacífica” entre os dois sistemas, sob a influência do PC espanhol feito intermediário do cominform e convertido à “linha pacífica” para o derrube de Franco; novamente com Júlio Fogaça a pontificar como ideólogo na muito debilitada direcção do PCP e com o regime a viver um longo período de acalmia social sob o signo da Guerra Fria, mas dando crescentes sintomas de divisão interna entre salazaristas ultramontanos e marcelistas; eis que as concepções da “transição” se transmutam na “via pacífica para o derrube de Salazar”, contra a estratégia do “levantamento nacional”, a linha oficial desde o I Congresso Ilegal, de 1943.
Desenho de Margarida Tengarrinha, onde pode ser visto o percurso da fuga
A “correcção do desvio de direita” empreendida por Cunhal e pelos seus apoiantes após a fuga, em 1960 e 1961, mobilizará o PCP para o fluxo da luta política e social que o país conhece até 1962. Mas a “correcção” tem uma limitação estrutural: a maioria dos “correctores” tinham sido os zelosos executores da política do “desvio de direita”, redimidos após a devida purificação autocrítica. Transposto o impasse inicial, criticado o “oportunismo de direita”, o “atentismo”, a submissão à burguesia liberal, o pacifismo e o que levara a desperdiçar a grande oportunidade do abalo delgadista, de 1958-59, reposta formalmente a linha do “levantamento nacional”, tudo voltava à rotina habitual. E quando, após as manifestações de Maio de 1962, a luta pelas oito horas de trabalho no Alentejo e, no mesmo ano, a crise universitária de Abril-Junho de 1962, sobreveio o impasse, o refluxo e o desânimo, o capital de queixa da esquerda do partido transformou-se em teoria crítica a que Francisco Martins Rodrigues, quadro da Comissão Executiva do Comité Central até aí próximo de Cunhal, haveria de dar expressão doutrinária até à malsucedida cisão orgânica em 1963 e 1964.
Mas esta luta interna dentro do PCP configura uma situação original e importante a médio prazo. Assim, embora até ao início dos anos 1970 o “levantamento nacional” ser uma retórica totalmente destituída de sentido prático, apesar de o mesmo acontecer com as episódicas declarações anticolonialistas inauguradas, sobre pressão do XX Congresso do PCUS, no III Congresso Ilegal do PCP, em 1957, não obstante a política de alianças continuar, até 1969, largamente tributária dos famosos “advogados da baixa”, o PCP é o único partido comunista pró-soviético da Europa Ocidental a defender teoricamente o recurso à luta armada. E quando, a partir de 1969-70, o partido se vê sob a ameaça de ser ultrapassado pela iniciativa das organizações armadas não comunistas ou pelas lutas anticolonialistas transformadas em eixo central da intervenção das esquerdas radicais, o PCP, mais na defensiva que ofensivamente, sabe pôr a Acção Revolucionária Armada (ARA) a agir e enceta, realmente, a luta anti-colonial - ainda que no quadro de uma orientação ideológica distinta quer do anticolonialismo católico quer, sobretudo, da luta anti-colonial da esquerda radical ou maoista. Chegava tarde, perdera terreno, haveria ambiguidades, mas aguentava a pressão à sua esquerda.
Portanto, o PCP encontra para si próprio, tanto interna como internacionalmente, uma posição relativamente singular: manteve-se ortodoxamente fiel à direcção do PCUS na internacional informal pró-soviética, sem verdadeiramente retirar no plano interno a luta contra o regime as consequências da “coexistência pacífica”. Se quisermos, recusando o legalismo pacifista como doutrina, a prazo, a rendição na sopa social-democrática onde grandes partidos como o PC francês, italiano ou espanhol se auto liquidariam identitária como organizativamente. Isto é, consolida internamente um espaço político de implantação entre a recusa do reformismo e o ataque ao “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”. Uma espécie de centrismo à esquerda, com capacidade adaptava em ambas as direcções consoante as circunstâncias; o nacional-comunismo, fiel às tradições republicanas que conciliam sem estados de alma com uma fidelidade sem mácula à ortodoxia do PCUS e às suas prioridades estratégicas. Mas essa posição peculiar, essa espécie de “esquerda” do campo pró-soviético entre a recusa da social-democracia e do “esquerdismo”, seria o seguro de vida do PCP para os conturbados tempos da implosão da URSS e da queda do muro. O aprendiz tivera sempre vida própria para além do feiticeiro.
A Saída do Interior
É preciso dizer que, entre 1941 e 1961, o partido refundado pelos “reorganizadores”, sempre buscando cumprir com zelo o que lhe parecia ser a orientação da IC e, depois, do cominform, tivera, todavia, de decidir o essencial do seu caminho político e ideológico por si próprio, dado o corte que se estabelecera com o comintern desde a dissolução da Secção Portuguesa, em 1938, naturalmente agravado pela Segunda Guerra Mundial. Júlio Fogaça tentara, sem êxito, reatar os contactos através dos EUA e do escritor José Rodrigues Miguéis, no início da “reorganização”. O certo é que, entre 1940 e 1948, tudo acontece à margem da IC e do seu sucedâneo. Nesse ano, como se sabe, Álvaro Cunhal viaja clandestinamente até à URSS, onde reata e normaliza as relações do PCP com o PCUS e as estruturas do cominform.
Foto da digitarq.arquivos.pt - Torre do Tombo (PT/TT/PIDE/E/010/38/7550)
Aparentemente, a prisão de Cunhal alguns meses após o seu regresso, em Março de 1949, prejudica a ligação que, no entanto, fica criada. Mas, mesmo assim, com toda a direcção no interior, fortemente acossada pela polícia desde os fins de 1949, o contacto faz-se frequentemente pela intermediação do PC espanhol. O PCP, apesar do mais próximo “acompanhamento” por parte do PCUS, continua a ser, ao longo dos anos 1950, um ente relativamente periférico e subalterno na orgânica do cominform.
A fuga de Cunhal vem alterar radicalmente os dados desta situação. A longa prisão do secretário-geral do PCP (desde 1961), a sua espectacular fuga de Peniche, o prestígio que internacionalmente adquirira, o facto de defender, como vimos, uma singular posição “revolucionária” no espectro dos partidos comunistas da Europa Ocidental faziam de Cunhal um quadro precioso para o PCUS no diferendo com o PC chinês, que começava a dividir publicamente o movimento comunista internacional. A pressão para deslocar o Secretário-Geral, a Comissão Política e parte da logística central do PCP para o exterior, designadamente para a Europa de Leste e a URSS, em nome da segurança de Cunhal e da defesa do partido, faz-se sentir imediatamente após a fuga de Peniche, tanto mais que a organização é atingida por graves ataques policiais em 1961 e o cerco parece apertar-se em redor de Cunhal. Além disso, é claro que uma tal escolha significava a aquisição de um apoio logístico e financeiro para o PCP sem precedentes na sua história.
Cunhal, parte da direcção e vários quadros aceitam abandonar o país em 1961. Pela primeira vez na sua história, a direcção política central do PCP instala-se no exterior, o que modificará significativamente o peso do exílio no conjunto da actividade política das oposições ao regime. O PCP, apesar da particular posição que sustenta no movimento comunista internacional, ou por isso mesmo, rompe com a antiga tradição de relativa autonomia e torna-se num dos mais zelosos defensores da ortodoxia pró-soviética. Logo em 1963, assume publicamente uma posição crítica do PC chinês e, em 1968, será o primeiro partido da Europa Ocidental a apoiar a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia. Cunhal torna-se um quadro de responsabilidade internacional no quadro do movimento comunista de orientação pró-soviética, como se verificará no processo de liquidação da “Primavera de Praga”.
Em troca, obtivera, desde Paris a Moscovo, a mais sólida retaguarda logística, propagandística, de treino e formação de quadros, de financiamento, de recuo e de segurança de ligações e deslocações de que alguma organização antifascista jamais dispusera em Portugal até ao derrube da ditadura. O PCP ficaria definitivamente preso a tal apoio. Até hoje, nunca foi capaz de o repensar criticamente.
Três escolhas, três caminhos definidos em diferentes circunstâncias e épocas históricas por direcções partidárias que têm em comum serem lideradas por Álvaro Cunhal e que marcaram, tanto no plano interno como no plano internacional, o que seria o perfil político e ideológico do PCP no pós Segunda Guerra Mundial, durante a clandestinidade, mas seguramente além dela.
Artigo de Fernando Rosas publicado originalmente no livro Álvaro Cunhal: Política, História e Estética, coordenado por José Neves e editado em 2013 pela Tinta da China.
1 José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal. Uma biografia política - “Daniel”, o jovem revolucionário (1913-1941), vol. 1, Lisboa, Temas e Debates, 1999; Álvaro Cunhal. Uma biografia política - “Duarte”, o dirigente clandestino (1941-1949), vol. 2, Lisboa, Temas e Debates, 2001; Álvaro Cunhal. Uma biografia política - O prisioneiro (1949-1960), vol. 3, Lisboa, Temas e Debates, 2005.
2 João Madeira, “O Partido Comunista Português e a Guerra Fria: ‘sectarismo’, ‘desvio de direita’, ‘Rumo à Vitória’ (1949-1965)”, tese de doutoramento em História Institucional e Política Contemporânea pela FCSH-UNL, 2011.
3 Apanhado, ainda, de surpresa pelas greves nas grandes empresas de Lisboa no Outono de 1942, o PCP surge, em 1943, já a convocar e a dirigir directamente o movimento grevista de Julho e Agosto desse ano em Lisboa, na Margem Sul e em São João da Madeira. O mesmo acontecerá, mas em conjuntura declinaste, nas greves de 8 e 9 de Maio de 1944, em todo o corredor industrial de Vila Franca de Xira.
4 Em Dezembro de 1943, é fundado, por iniciativa do PCP, o Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), que reúne todas as forças e correntes políticas de oposição ao regime salazarista.
Correção: O Congresso do PCUS de 1956 é o XX e não o II, como estava no texto por gralha.