Leituras

“Por dentro do Chega” de Miguel Carvalho – uma leitura essencial

22 de setembro 2025 - 10:11

Este livro assusta tanto quanto provoca gargalhadas sonoras e é uma leitura essencial para entender as direitas portuguesas, porque coloca boa parte da literatura académica e ensaística mais recente em contexto (a bibliografia é extensa e bem trabalhada com os testemunhos e investigação que realizou).

porTiago Ivo Cruz

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‘Por Dentro do Chega: A Face Oculta da Extrema-Direita em Portugal', Miguel Carvalho - Penguin Livros
‘Por Dentro do Chega: A Face Oculta da Extrema-Direita em Portugal', Miguel Carvalho - Penguin Livros

Em ‘Por Dentro do Chega: A Face Oculta da Extrema-Direita em Portugal', lançado pela Objetiva Penguin Livros esta semana, Miguel Carvalho foi muito além do rocambolesco plano de fuga para Marrocos que a cúpula do Chega terá planeado em 2020 (perante uma ameaça imaginada da PJ contra o partido) e do culto da personalidade que dominam a comunicação do Chega. Articulou com mestria os caminhos individuais e solitários que levaram milhares para a militância de extrema-direita (a vida de Lucinda Ribeiro, p.136 e 338, ou de Marcus Santos p.679), as contradições internas de um partido nascente (é particularmente interessante ver como a militância se organizou e se partiu em divergências ideológicas insanáveis desde o início (p.126) e como isso é lido por apoiantes orgânicos como Sousa Lara, e as diferentes instituições que garantiram poder e influência nos momentos cruciais de ascensão de Ventura: o Benfica de Luís Filipe Vieira, a Correio da Manhã TV, a Chiado Editora, a Igreja Evangélica, um rol infindo de empresários e de famílias de linhagens longas (ver, na p. 346, o episódio da Quinta do Barruncho e as baronesas empobrecidas deste país), vários jornalistas específicos (o papel de Patrícia Carvalho e Sebastião Bugalho são detalhados nas páginas 107/108), as inevitáveis redes sociais (Lucinda Ribeiro descreve como, através do facebook e com a mobilização da sua paróquia evangélica, agregou dezenas de milhares de seguidores em grupos dedicados ao Ventura em 2018, p.139), e uma fortíssima adesão de "polícias, militares (no ativo e na reserva), guardas prisionais, operacionais e inspetores do SEF, bombeiros, seguranças privados", incluindo ex-combatentes da guerra colonial bem como "efeitos dos três ramos com experiência em zonas de conflito com o Afeganistão ou Kosovo, e até um guarda prisional e sniper, calejado em operações internacionais ao serviço do Exército francês" (2025: 287).

Este livro assusta tanto quanto provoca gargalhadas sonoras e é uma leitura essencial para entender as direitas portuguesas, porque coloca boa parte da literatura académica e ensaística mais recente em contexto (a bibliografia é extensa e bem trabalhada com os testemunhos e investigação que realizou), mas, sobretudo, vai além da simples dicotomia moral entre a verdade e a mentira que domina a leitura liberal destes neofascismos, nem recorre a equivalências amorais que se hegemonizaram no esforço de os normalizar através de fórmulas como «os extremos são todos iguais» (a este respeito, ver a conversa com o investigador Cristiano Gianolla, p. 650).

Se Miguel Carvalho ultrapassa claramente a leitura liberal sobre o Chega, não a abandona por completo. Explico a crítica através de outro livro que, nem de propósito, a Penguin vai lançar na chancela Objetivamente também esta semana: 'Contra o Progresso', de Slavoj Zizek (2025).

Neste novo ensaio, Zizek dá as coordenadas de leitura crítica sobre os fascismos contemporâneos partindo das reticências que Jacques Lacan colocou no título do seu seminário ... ou pire [... ou pior] (1972) - uma referência à piada em francês 'le père ou pire' [o pai ou o pior], onde as reticências são o referente ausente do pai-patriarcado. Zizek contrasta Trump - para quem 'a (aparência de) autoridade dignificada é substituída por uma figura paternal obscena que se ri abertamente de si própria, recorrendo a piadas sexistas e porcas' (Zizek 2025: 78) - com Marine Le Pen: se ela se esforçou por 'desdemonizar' a extrema-direita indo ao ponto de expulsar o pai do partido que fundou, os antifascistas tentam 'redemonizar' Le Pen como sendo pior que o pai precisamente porque normalizou o seu partido. Mas é aqui que a obscenidade de Le Pen contraste com a de Trump: é rigorosamente legalista. "Le Pen insiste que o seu país já tem uma legislação justa e adequada [...]. São os globalistas no poder que violam a legislação francesa existente, fazendo vista grossa quando os fundamentalistas islâmicos violam os direitos das mulheres [...]. Ela [Le Pen] apresenta as suas visões extremistas como a encarnação do centrismo tolerante" (2025: 80).

Em qual das reticências poderíamos encaixar Ventura e o Chega? Miguel Carvalho aponta para ambas e ainda muitas outras. Há um evidente oportunismo intelectual em todo o percurso pessoal, académico e partidário de Ventura que explica tanto as semelhanças do Chega com outras extremas europeias como a sua singularidade, onde um trabalho consistente de produção de um partido de culto em torno de Ventura é fulcral. Não se arroga ao centrismo de Le Pen, mas é igualmente legalista contra a «invasão islâmica». Como Trump, ri-se obscenamente das acusações de racismo e xenofobia, mas cultiva uma piedade e culto digno do silício (que já admitiu ter usado ao jornalista Vítor Matos). É de extrema-direita como Meloni, mas não rejeita a herança fascista como a primeira-ministra italiana afirma fazer. E se, em Itália, o abandono do Trabalho como centro da luta pela justiça social ditou uma clara migração social da esquerda para a extrema-direita, Miguel Carvalho explora esse efeito também em Portugal, nomeadamente no Alentejo. No entanto, a esquerda radical portuguesa - PCP ou Bloco de Esquerda - mantiveram sempre a sua atividade política alicerçada em questões do Trabalho (Miguel Carvalho dá exemplos vários ao longo do livro). À atomização das relações comunitárias sobrepôs-se uma explosão de interações digitais de curadoria tecnofascista que absorveu velhos e jovens, operários e intelectuais, políticos e estudantes? Sim. Mas, julgo que não foi apenas a povaça a ser absorvida por esta avalanche de esvaziamento das palavras e das ideias. A própria comunicação social acompanhou e validou - mesmo que negativamente como é o caso de projetos como o Polígrafo - a ascensão dos temas e dos termos definidos pelas redes sociais. A ideia de uma «opressão wokista» de «extrema-esquerda» contra a qual vários testemunhos recolhidos por Miguel Carvalho se insurgem sucessivamente é totalmente importada, e nem por isso deixou de saltar para os ecrãs dos jornais das oito e ao comentário político.

Depois de tudo o que explorou, Miguel Carvalho termina o livro com um desejo de que "a democracia e o escrutínio público que esta ainda permite talvez consigam, a médio ou longo prazo, limitar ou pôr fim à aventura do Chega e do seu líder". Mas, para isso, é necessário "escutar e dialogar com essa geografia eleitoral, sem confundir o seu voto circunstancial com lideranças e aparelhos partidários que dele beneficiam, talvez consiga resgatá-la a opções extremistas" (Carvalho 2025: 733). Não há nada com que discordar nestas frases, o que costuma ser mau sinal. Devemos perguntar: em que ponto deste livro é que a disponibilidade de Miguel Carvalho para ouvir e compreender os trajetos individuais de quem aderiu ao Chega, de discutir com eles, de lhes mostrar incongruências evidentes no seu pensamento, lhes mudou uma vírgula de apoio e culto a Ventura?

Tiago Ivo Cruz
Sobre o/a autor(a)

Tiago Ivo Cruz

Doutorando na FLUL, Investigador do Centro de Estudos de Teatro/Museu Nacional do Teatro e da Dança /ARTHE, bolseiro da FCT