Raptos, deportações e reeducação: como a Rússia governa as regiões ocupadas

09 de março 2024 - 20:53

No mesmo dia em que se conhece mais uma onda de prisões de ativistas e líderes religiosos tártaros na Crimeia e que dois altos comandantes russos têm mandatos de detenção do TPI, o Guardian analisa como o ocupante russo age na região ucraniana de Zaporíjia.

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Foto do Crimean human rights group.
Foto do Crimean human rights group.

Uma reportagem do jornal britânico The Guardian, publicada esta quarta-feira, revela algo da realidade de uma das zonas que a Rússia anexou parcialmente em 2022, a região de Zaporíjia, e de como o governo de Putin se prepara para utilizar as próximas eleições para “aplicar um fino verniz de legitimidade à governação feita através da coerção, do terror e das transferências de população”.

Através de entrevistas e de documentos do Kremlin, mostra-se como “as autoridades usaram ameaças e violência desde os primeiros dias da ocupação”. Quando as forças russas tomavam uma localidade, tratavam de pressionar os autarcas para colaborar com o ocupante: “a maior parte dos presidentes de Câmara recusou colaborar” afirma o jornalista que exemplifica com a prisão de Iryna Lypka, presidente de Câmara de Molochansk, e de vários outros autarcas. Esta foi ameaçada por homens com a cara tapada de ser acusada de “agitação anti-russa” e de ser condenada a prisão perpétua na Sibéria e conta como ouvia gritos das pessoas que eram torturadas. Depois de ser libertada, fugiu para território controlado pelos ucranianos.

Quando não conseguiam com ameaças convencer as autoridades locais, procuravam colaboradores. Fossem quem fossem. Aqui o exemplo dado é da cidade de Vasylivka que passou a ser dirigida por um ator local que chefiava uma agência que fazia sessões fotográficas infantis e não tinha qualquer experiência autárquica.

A política oficial das forças de ocupação, entre julho de 2022 e maio de 2023, era de deportação de quem quer que se envolvesse em qualquer atividade que pudesse ser considerada “desacreditar os órgãos do poder russo”. Foram estas mesmo que publicaram vídeos com homens mascarados a ler ordens de deportação que implicavam uma expulsão do território controlado sem direito a levar nenhum dos seus pertences. E foi o governador da região instalado pelo governo russo, Yevgeny Balitsky, que justificou as deportações como uma medida humanitária, já que “não queremos o sangue de pessoas inocentes nas nossas mãos”.

Dois anos de guerra na Ucrânia

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E nestas condições realizou-se em setembro de 2022 o referendo, que se tornou “uma outra forma de descobrir potenciais simpatizantes ucranianos”, escreve-se, contando-se o caso de um idoso que se recusou votar quando várias mulheres acompanhadas de soldados russos lhe bateram à porta. Nessa noite, soldados invadiram-lhe a casa, espancaram-no, e anunciaram que seria expulso.

Relatam-se ainda casos de raptos de “milhares” de pessoas consideradas “perigosamente pró-ucranianas”. Muitas das famílias continuam sem notícias das pessoas levadas. Entre pessoas raptadas, deportadas e aquelas que fugiram voluntariamente, calcula-se que perto de metade da população tenha saído.

Para além disso, trazem-se à baila os documentos internos do Kremlin, dados a conhecer pelo portal de investigação estónio Delfi, que, entre outras facetas, mostram a dimensão do projeto de “reeducação” das populações dos territórios invadidos. Num dos documentos, datado de janeiro de 2023, informa-se que 6,6 mil milhões de rublos são destinados a “formação de novos funcionários públicos”, “programas educativos entre jovens” e à implantação da infraestrutura da Roskomnadzor, agência de censura da Internet na Rússia. Outro documento, uma folha de cálculo de junho de 2023, indica que o orçamento do governo destinado a novos meios de propaganda naquela região, como criação de páginas de Internet, canais de Telegram, pagamentos a “influenciadores”, ascenderá a 144 milhões de rublos em 2023, defendendo-se a sua duplicação para este ano. Um dos destinatários é o recém-criado vzaporozhye.ru, o que implicou trazer jornalistas de Moscovo para montar uma página de propaganda.

Crimeia: nova onda de prisões de dirigente tártaros

Noutro território ucraniano ocupado pela Rússia, este desde 2014, a Crimeia, os serviços secretos russos, a FSB, fizeram na madrugada desta terça-feira uma rusga à casa de dez ativistas da organização “Solidariedade da Crimeia” e líderes religiosos da minoria tártara, tendo-os prendido sob a acusação de terrorismo e de pertencerem ao Hizb ut-Tahrir (o partido pan-islâmico, acusado na Rússia de terrorismo mas legal na Ucrânia).

As buscas, afirmam estes defensores dos direitos humanos, “confirmam as tradições repressivas inalteráveis da administração de ocupação russa da Crimeia”: desde a entrada em casa de madrugada, ao plantar de livros proibidos como é o caso do livro “Califado”, “muitas vezes usado para falsificar” acusações.

Estas rusgas acontecem frequentemente, denuncia-se. Ao longo dos dez anos de ocupação da Crimeia já houve 17 vagas de detenções de tártaros. Perseguem-se “os ativistas tártaros da Crimeia, os defensores dos direitos humanos, jornalistas e figuras religiosas”, com a propaganda oficial a tentar convencer que está a lutar contra o “terrorismo islâmico”.

Também aqui se denuncia “a prática brutal sistemática e que vai aumentando, de raptos, torturas, prisões e outras atrocidades do regime racista contra os residentes” não só da Crimeia mas também de outras áreas ocupadas pela Rússia

TPI lança mandados de captura para dois comandantes russos por crimes de guerra

O Tribunal Penal Internacional anunciou em comunicado esta terça-feira que tinha emitido mandados de captura contra dois altos comandantes militares russos por alegados crimes de guerra, nomeadamente por terem ordenado ataques a infraestruturas civis.

Os visados são o tenente-general Sergei Kobylash, comandante da aviação russa, e o almirante Viktor Sokolov, antigo chefe da frota russa do Mar Negro. São acusados de “crime de guerra de causar danos incidentais excessivos a civis ou danos a objetos civis e crime contra a humanidade de atos desumanos".

Terão ordenado ataques de mísseis contra infraestruturas de eletricidade na Ucrânia “entre, pelo menos, 10 de outubro de 2022 e 9 de março de 2023”. Kobylash terá sido ainda o responsável por ataques aéreos contra zonas densamente povoadas em Mariupol. E Sokolov terá lançado, a partir da frota do Mar Negro, ataques a infraestruturas civis.

As acusações divulgadas são genéricas de forma a proteger testemunhas e salvaguardar as investigações, afirma-se.

A Rússia, como os EUA, a China e a Índia aliás, não reconhece a autoridade deste organismo. Isto quer dizer que legalmente o mandado não será aplicado no seu país de origem.

Não é primeira decisão desta instância sobre a guerra na Ucrânia. Em março do ano passado, mandados de captura contra Putin e Maria Lvova-Belova, a sua “Comissária para os direitos das crianças”, acusavam-nos da deportação sistemática de crianças ucranianas para a Rússia.

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