Vanda Vicente fez grande parte da sua vida a trabalhar por turnos. Na fábrica, no chão de loja e na estrada, encontrou sempre dificuldades em articular a sua vida pessoal com a vida profissional, e não saiu sem consequências.
Nesta entrevista, fala sobre a sua experiência. Sobre o trabalho noturno, a ausência dos fins-de-semana, a distância que durante esses anos teve da sua filha. Fala também sobre abusos laborais e sobre o cansaço que acumulou até hoje.
Em 2024, o Bloco de Esquerda lançou uma petição para garantir direitos aos trabalhadores por turnos, inclusivamente a obrigatoriedade do serviço por turnos, as 24 horas de descanso na mudança de horário por turno, limite de 35 horas semanais para trabalho por turnos e a antecipação da idade da reforma. A petição procurou também recolher testemunhos de trabalhadores por turnos. Vanda é uma dessas trabalhadoras.
Qual foi o seu primeiro contacto com o trabalho por turnos?
Foi com uma empresa de reposição, a Galvão e Gonçalves. Entrava às seis da manhã e as folgas eram rotativas. O horário era sempre o mesmo, mas os folgas não. E quando ia de férias não tinha ninguém para substituir as minhas férias. Quando arranjava alguém, a pessoa não sabia fazer o serviço e eu tinha de me ir substituir a mim própria. Saí um ano depois e entrei para a fábrica das carnes da Sonae em Santarém.
Onde também trabalhou por turnos. O que é que mudou?
Fazia o turno da noite, da meia-noite às nove da manhã. Fiquei bastante doente, deprimida, e deixei de conseguir comer. Não consegui aguentar aquele turno. Não conseguia dormir durante o dia e o trabalho era muito puxado, carregávamos paletes com 700 quilos à mão, em porta-paletes manuais. Era um esforço monstruoso para mim. Eu carregava os camiões, estava na expedição. Acabei por só conseguir trabalhar quatro meses. Não conseguia comer, a pressão era muito grande, as chefias também não eram as melhores e aquele horário é um horário contrário ao sistema humano. Dei por mim a beber dez a 12 cafés por noite para aguentar o turno. Depois chegava a casa e não conseguia dormir. Comecei a dormir três horas por noite e ao fim de quatro meses, cai para o lado. Tive de meter baixa e quando me perguntaram se queria renovar o contrato, eu disse que estava fora de questão.
Os seus colegas sentiam o mesmo?
O meu turno era o turno mais pequeno daquela fábrica, com 40 pessoas. Durante o dia, os turnos eram 600 a 800 pessoas. Havia uma perceção de que o trabalho era imensamente pesado. E a troco de um ordenado mínimo, com horas extra não pagas. Trabalhava até feriados que não me pagavam. Uma vez questionei e disseram-me que está incluído no horário normal de trabalho, e portanto que ia receber o ordenado normal. Eu na altura tinha 22 anos e não tinha bem a noção do quão estava a ser explorada. E era regra geral para todos, daquilo que percebi. Já tive um contrato mais recente com a Sonae e posso dizer que é perita em encontrar estratégias para se desviar da lei, nunca em benefício dos trabalhadores.
Pode dar algum exemplo concreto da forma como a empresa contornava a lei?
Esta situação dos feriados, que eles diziam que estava contemplado no meu horário normal de trabalho e que não era nenhum trabalho extra. Depois tive a experiência de trabalhar no Continente Bom Dia como caixa. Recebia ordem da chefe para, chegada a minha hora, picar o cartão de saída e voltar para dentro da loja e terminar o meu serviço. Mesmo às vezes quando eu me esquecia de picar o cartão e fazia a hora extra, ela no dia a seguir desaparecia com as horas e vinha ralhar comigo porque eu deveria ter picado e continuado o serviço.
Nesta altura já era mãe? Como é que conjugou isso com o trabalho por turnos?
Quando eu estava na fábrica da Sonae felizmente ainda não era mãe. Quando saí da fábrica da Sonae ainda trabalhei por conta própria durante algum tempo, também fui comercial imobiliária. Acabei por ser mãe e quando voltei a entrar novamente no trabalho de turnos foi para o Continente Bom Dia. Entrei em part-time e estava a tirar uma formação pelo IEFP. Durante a manhã tinha o IEFP e depois das quatro da tarde às nove da noite tinha o trabalho no Continente. Só que nunca era até às nove, era sempre até às dez e meia. Oficialmente era caixa, mas as funções que fazia eram de supervisora. Não me acresceu nada no ordenado, mas muito na responsabilidade. Chegava sempre a casa bastante tarde, sempre por volta das 11 da noite, e às seis da manhã do dia seguinte eu já tinha de estar a preparar a minha filha, preparar o almoço, preparar logo o jantar. Acabei por me sentir uma má mãe, porque não estava tão presente para a minha filha. Depois havia um desgaste psicológico enorme, foi numa altura muito complicada na minha vida.
Disse que o horário era até às nove, mas que muitas vezes ficava até às dez e meia. Porquê?
Como estava no balcão, eu era responsável por tirar todos os relatórios para o diretor ver no dia seguinte. Depois também tinha de contar o cofre, tinha de arrecadar o dinheiro dos caixas, e portanto era impossível eu sair às nove. Tinha de imprimir relatórios, tinha que aguardar que as outras secções acabassem de dar as quebras do dia, era a última pessoa a sair daquela loja.
Foi tendo trabalho por turnos de forma intermitente. Como é que isso impactou as suas rotinas?
Quando temos horários para cumprir, organizamos obrigatoriamente a nossa vida em função desses horários. Quando os horários estão constantemente a alterar acaba por ser um transtorno muito grande a nível psicológico, principalmente. Ainda por cima quando somos nós a gerir uma casa inteira com crianças.
Nunca conseguiu obter um horário adaptado por ser mãe?
Não me permitiram. Aliás, o meu horário era sempre o horário da noite. O que me disseram foi que se quisesse estar assim, tudo bem. Se não, podia ir embora. Era aquele horário e pronto. Quando saí da Sonae fui para a Jerónimo Martins, e reparei que também tinham a tendência de me pôr sempre no horário de fecho. E a justificação para isso era que toda a gente tinha filhos, só que a minha era a mais velha. É como se deixasse de ter um direito porque a minha filha era mais velha. Nunca consegui fazer valer o meu direito.
Na Jerónimo Martins enfrentou os mesmos problemas com o trabalho por turnos?
Sim. Fiquei bastante revoltada com isto tudo. Ainda mais, as colegas que lá estavam, que tinham filhos, tinham marido em casa. Eu não tinha marido, portanto não tinha esse apoio. Tive de ter o apoio dos meus pais. Aliás, eu nunca pude sair de perto dos meus pais porque senão, ou não trabalhava, ou tinha de deixar a minha filha em casa sozinha.
Depois da Jerónimo Martins voltou a trabalhar por turnos?
Sim. Fui para a Wizink. Entrei em 2020, em plena pandemia. E encontrei novamente uma chefe que me castigava com horários noturnos. Chegou a colocar-me a duas horas de distância da minha casa. Chegava a casa à meia-noite. A minha filha muitas vezes tinha de ficar a dormir na casa dos meus pais, porque obviamente não podia sair da escola e ficar sozinha até eu chegar. E havia semanas em que só via a minha filha por videochamada. Foi horrível.
Quais eram as suas funções na Wizink?
Era comercial, fazia propostas para os cartões de crédito. Aqueles balcões que estão nos centros comerciais. Abordava as pessoas proativamente e apresentava-lhes o cartão. Na altura, prometeram-me um salário de 900 euros por cinco horas de trabalho diário. Avisaram-me que eu só teria uma folga por semana e eu pensei que com cinco horas de trabalho diário não ia ser muito pesado, então entrei na empresa. Eu precisava do dinheiro, como é óbvio, e nem sempre é fácil sendo mãe solteira, porque é daquelas coisas que nas entrevistas não se pode perguntar, mas todos perguntam. Achei que seria bom, mas o problema é que os balcões alteram. Ou seja, não são sempre à porta da minha casa. Eu tinha muitas vezes que andar com um balcão dentro do meu carro, sem seguro e sem documentação, e tinha de fazer cidades em todo o distrito e mesmo fora. Tinha destinos que ficavam a cerca de duas horas pela autoestrada. Ou seja, as cinco horas passavam a ser nove e depois ainda tinha mais uma hora de almoço, que era obrigatória. A conclusão é que acabava muitas vezes por passar dez horas ou mais fora de casa.
Trabalhava ao fim-de-semana também. Como é que se concilia esse horário com a vida familiar, com os pais ou filhos?
É muito complicado. A minha folga era sempre à quarta-feira. Acho que tinha um domingo em casa de dois em dois meses. Ao fim-de-semana, a minha filha não tinha escola e eu de manhã conseguia vê-la, mas tinha um tempo muito reduzido com ela.
Em retrospetiva, acha que é viável numa família com crianças muito novas, e neste caso em particular, com uma mãe sozinha, fazer um trabalho por turnos sem adaptação à vida familiar?
É completamente impossível fazê-lo sem enlouquecer. Sabemos que o sistema está montado desta maneira, mas é inevitável nós estarmos no meio do sistema e não nos sentirmos culpadas. Senti-me, durante muitos anos, uma mãe horrível. Estava a ir buscar dinheiro porque ele não vem de mais lado nenhum. Ainda por cima o pai da minha filha não quer pagar a parte dele, e quando paga é um valor tão irrisório que nunca dá para nada. Tinha essa carga acrescida nas minhas costas. Já era difícil ser aceite no trabalho, ainda mais estar a recusar porque era por turnos... A nível psicológico, a nível físico, a nível financeiro. Houve uma altura da minha vida em que não tinha a minha mãe e tinha de pagar a uma ama. Portanto, ou eu vinha para a miséria e estava com a minha filha ou eu era excluída da vida da minha filha para poder trabalhar e pagar as coisas que ela precisava. E é quase impossível manter isso por muito tempo.
Agora já não está a trabalhar por turnos?
Não. Quando saí da Wizink, entrei para uma formação de gestor de tráfego nas redes sociais. Trabalho em casa, na área do marketing digital. Agora, se a minha filha liga porque se esqueceu de alguma coisa em casa, em 5 minutos estou na escola e outros 5 minutos estou em casa. É uma liberdade, uma coisa que nem tenho como definir.
Mas sente que o desgaste do trabalho por turnos ficou?
Sim. Foi quase a minha vida inteira de trabalho. Fiquei com ansiedade crónica. Noto, por exemplo, se dormir uma noite mal dormida, a seguir estou o dia inteiro cheio de ataques de ansiedade. Porque o meu sistema nervoso central ficou mesmo afetado. Fiquei com coisas que não tinha.
Assina aqui a petição para proteger os trabalhadores por turnos.