Na fábrica de semicondutores onde Patrícia Figueiredo trabalhou, os turnos eram de doze horas e rodavam durante a semana. Dois dias de dia, dois dias à noite. Essa transição levou a trabalhadora a uma situação em que não conseguia dormir, ao mesmo tempo que tinha de fazer um trabalho muito preciso e cuidadoso.
A fábrica mudou de mãos e os turnos foram-se alterando. Patrícia Figueiredo trabalhou lá dezanove anos, desde os 22 anos de idade. Em entrevista ao Esquerda, fala sobre as dificuldades de trabalhar por turnos, mesmo quando se gosta daquilo que se faz.
Em 2024, o Bloco de Esquerda lançou uma petição para garantir direitos aos trabalhadores por turnos, inclusivamente a obrigatoriedade do serviço por turnos, as 24 horas de descanso na mudança de horário por turno, limite de 35 horas semanais para trabalho por turnos e a antecipação da idade da reforma. A petição procurou também recolher testemunhos de trabalhadores por turnos. Sofia é uma dessas trabalhadoras.
Retratos do trabalho por turnos
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Porque é que escolheu ir trabalhar para a Siemens e como foi a sua experiência de início de trabalho?
Tinha acabado o 12º ano e estava a trabalhar numa empresa de importação e exportação. Uma amiga minha, que tinha andado comigo na escola, disse que estava numa formação para poder entrar depois para a Siemens. Eu fiz a inscrição e consegui entrar. Tive nove meses de formação aqui em Portugal e depois tive quatro meses na Alemanha. Na Alemanha começamos logo a trabalhar por turnos. Acabei por ficar no trabalho 19 anos.
Como era o trabalho?
Era algo muito leve, não era nada pesado fisicamente. Tínhamos era de ter muita atenção porque aquilo era muito minucioso. A nossa sala era como se fosse uma sala de operações, não podia haver movimentos bruscos para não afetar o produto. Mas era um trabalho muito leve, o que era cansativo eram os turnos. Inicialmente turnos de oito horas, das 7h às 15h, das 15h às 23h e das 23h às 7h. Trabalhávamos quatro dias e tínhamos três de folga. Na altura era mais tranquilo, porque só se passava para o turno da noite duas vezes por mês. Depois a fábrica mudou de mãos para a Infineon, e depois para a Qimonda. Logo aí os turnos passaram a 12 horas.
Lidou bem com os turnos de oito horas, na altura?
Na altura tinha 22 anos, portanto, para nós era ótimo. O turno da manhã para mim era o mais penoso porque eu dormia mal de noite, mas era ótimo. Como éramos novos era tudo muito tranquilo. Não havia ainda família, nem havia nada disso. Depois, quando se começa a casar, a ter filhos, pois aí já é muito mais rotineiro e muito mais cansativo.
Os turnos de 12 horas agravaram isso?
Foi muito mais duro, porque mudávamos de turno de dia para o turno da noite no máximo três vezes por semana. Imaginemos, segunda e terça trabalhamos das 7h às 19h, depois estávamos de folga quarta e quinta, e sexta-feira iniciámos às 19h. E depois era trabalhar no turno da noite até segunda-feira de manhã, que acabava por não contar porque saíamos às 7h. Depois terça-feira para descansar e para retomar o sono, e na quarta-feira já estávamos a trabalhar às 7h. Portanto, é sempre a mudar. O corpo nem se habitua.
Que balanço faz dos 19 anos de trabalho por turnos?
No fim já estava a ser muito penoso, porque não conseguia dormir nem de dia, nem de noite. E estar atenta 12 horas é muito complicado. Estar em frente a um computador, ir fazer uma inspeção de não sei quantos semicondutores, e estar ali atento sem adormecer. E se uma pessoa deixasse passar algum erro era um prejuízo muito grande para a empresa. Nós tínhamos essa consciência e eles também tinham. É claro que tínhamos de fazer o nosso trabalho independentemente de termos dormido ou não
Retratos do trabalho por turnos
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Porque é que saiu?
Antes de entrar em insolvência, eu tinha subido de posto e voltado para as oito horas. Era um trabalho em que eu acompanhava a produção e fazia a ponte com a engenharia. Depois a fábrica abriu insolvência e estive no fundo de desemprego. Quando voltou a abrir, voltaram a chamar as pessoas para turnos de 12 horas. No meu caso foi part-time de 6 horas e não foi tão penoso. Só que entretanto consegui entrar para os quadros e passei novamente aos turnos de 12 horas e realmente foi um descalabro. Cheguei à conclusão que era melhor não continuar naquela empresa, porque não conseguia dormir, não tinha qualidade de vida nenhuma. Já tinha 40 anos e se não dormisse mais do que oito horas, a minha dislexia acentuava-se muito e tinha um défice de atenção. Ainda hoje se dormir menos de oito horas fico assim. Cheguei a
Esse mal-estar era comum a todos os trabalhadores? Como é que lidaram com isso?
Quando tínhamos reuniões gerais, nós colocávamos a possibilidade de mudarmos o horário. Mas eles não aceitavam. Ou por isto ou por aquilo. E chegou uma altura em que o pessoal acabou por ficar desiludido. E houve muita gente na minha altura que foi embora por causa disso. Só ficaram mesmo os mais antigos, a maior parte já foi embora por causa dos turnos.
Tenho a ideia de que há cada vez menos pessoas jovens nesse tipo de trabalho por turnos.
Segundo o que me dizem, estão com um novo projeto. Vão investir ali muito dinheiro e contratar mais pessoas. Só que o recrutamento está muito difícil, porque o ordenado também não é grande coisa. Na altura que eu entrei compensava muito trabalhar nos feriados, tínhamos prémios de produção de dois em dois meses. Hoje em dia não há nada disso. As pessoas pensam duas vezes. Trabalhar ao fim-de-semana, trabalhar aos feriados, trabalhar 12 horas por turno e ganhar pouco. Se calhar se eles aumentassem o ordenado conseguiam encontrar mais gente.
Disse que chegou a uma altura em que não conseguia dormir. Como é que lidava com isso?
Eu já não dormia de dia nem de noite. Era terrível. Ouvia tudo durante o dia, podia ouvir o alarme a tocar lá no vizinho, na ponta da freguesia. Ouvia tudo. E o máximo no fim-de-semana eram 3 dias. Eu ia para a cama cedo e não dormia, o meu cérebro funcionava muito, mesmo com comprimidos para dormir. Cheguei a dormir uma média de 45 minutos. E depois havia a preocupação de estar 12 horas em frente ao computador. A preocupação de falhar era algo que me preocupava muito.
E ao longo dos 19 anos foi piorando?
Sem dúvida. Inicialmente era tudo muito bonito, tínhamos cadeiras para nos sentarmos e depois tiraram. Era muito complicado, e não era só eu, éramos todos. Às vezes quando não havia produção, ficávamos a olhar uns para os outros. Para mim já era uma perda de tempo estar ali. Eram algumas alturas em que nós tínhamos muito pouca produção. Fazíamos aquilo que já estava feito, e era penoso porque eram 12 horas que não passavam.
Acha que isso teve impacto na sua saúde?
Sem dúvida alguma. Ainda hoje em dia, se dormir menos de oito horas, fico com dislexia, fico com mau humor, a capacidade de raciocínio já não é a melhor. E a idade também acaba por ajudar nesse sentido. Quando saí, a minha qualidade de vida melhorou. Tinha os fins-de-semana em casa com a família, podia combinar com as minhas amigas. Enquanto trabalhava lá, só nas folgas, e normalmente eram à semana.
Porque é que decidiu tomar comprimidos para dormir?
Na altura fui ao médico de família e disse que não conseguia dormir, nem de noite. Mas os comprimidos não fizeram efeito e depois tinha de me manter acordada. Tomava café e tomava medicamentos só para ficar ativa, e depois na mesmo dia tinha de tomar comprimidos. Ou seja, estava a lutar contra o sono.
Como é que conjugou esses horários com a sua vida familiar?
Eu não tenho filhos, mas tenho uma sobrinha que acabei por não conseguir seguir o crescimento dela, porque trabalhava aos fins-de-semana. Às vezes ia buscá-la à escola, só.
Acha que a organização do trabalho funcionaria com turnos fixos?
Nós chegámos a propor isso. Eu acho que tínhamos operadores suficientes para cobrir as equipas. Fazer só turno da manhã e turno da noite. Tenho quase a certeza que o pessoal gostaria muito mais, porque há pessoal que gosta mais de manhã, outros da tarde, e outros da noite. E há pessoal que gosta mais de trabalhar ao fim-de-semana se receberem mais.
Disse que propunham alterações à empresa mas que nunca eram aceites. Porquê?
Nós tínhamos reuniões gerais uma vez por mês. Normalmente apanhavam as duas equipas. Uma a sair, outra a entrar. Nós propúnhamos com antecedência, propúnhamos horas e horários diferentes, mas eles chegavam à reunião geral a dizer porque é que não aceitavam.